Escrito por: Hamilton de Sandra, Sofia Uchoa e Julia Rossi
Bongbong Marcos. Public Attorney’s Office (NCR) Training - 3 November 2015
Localizado no sudeste asiático e abrigando 7641 ilhas e ilhotas, o arquipélago das Filipinas recebeu esse nome em homenagem ao imperador espanhol Felipe II, que conquistou a região em 1564. Desde então, as Filipinas foram governadas como um território da Nova Espanha e administrado a partir do México entre 1565 e 1821. Posteriormente, foi administrado diretamente de Madrid, entre 1821 e final da Guerra Hispano-Americana, em 1898, quando a Espanha cede as FIlipinas para o domínio norte-americano, também sofreu com um breve período de domínio britânico entre 1762 e 1764. Apenas no pós Segunda Guerra Mundial em 1946 que as Filipinas conquistaram sua independência graças à resistência nacionalista, liderada pelo combatente nativo Aguinaldo, com um dos acordos de independência sendo para manter as bases militares estadunidenses em território filipino mesmo após sua emancipação.
O primeiro presidente eleito depois da proclamação da independência filipina trata-se de Manuel Roxas, que estabelece a república democrática presidencialista como forma de governo em um país com 81 províncias e 38 cidades administrativas. No governo filipino, o presidente é eleito por meio de voto popular, sem necessariamente precisar da maioria dos votos da população - diferentemente do Brasil, em que a eleição pode ir para segundo turno se nenhum candidato atingir essa métrica-, além disso, o presidente tem um mandato de seis anos podendo ser reeleito com um limite de dois mandatos consecutivos. Nesse tempo, desempenha a função de chefe de Estado, a escolha do vice-presidente é separada, em caso de empate na eleição, a decisão fica a cargo do poder legislativo, representado pelo Congresso, um órgão bicameral formado pelo Senado, constituído por 24 assentos, e pela Câmara dos Deputados, com 304 assentos.
Desde sua independência, por se tratar do período da Guerra-Fria, o governo filipino enfrentou guerrilhas comunistas, mas em linhas gerais se manteve unido. Em 1966 o advogado e assessor do ex-presidente Manuel Roxas, Ferdinand Marcos ganhou a eleição com grande apoio popular. Porém, à sombra da reeleição que ele não poderia mais concorrer, em 1972, Marcos impõe uma lei marcial em pretexto de resposta a atos das forças de esquerda que ameaçavam seu governo. No ano seguinte, outorga uma nova Constituição e assume poderes ditatoriais. Nesse tempo, Marcos revelou-se um tirano e fechou o parlamento, prendeu seus principais oponentes políticos e comandou seus grupos paramilitares a provocar e assassinar os que criticavam seu governo. Após a aniquilação da oposição, Marcos criou um amplo sistema de corrupção a fim de enriquecer e favorecer seu círculo de confiança assim como a sua esposa, Imelda, que ficou famosa por sua vida extravagante, colecionando joias e sapatos às custas do dinheiro popular.
Deste modo, o governo de Marcos ficou marcado pelos laços estreitos com os EUA e pela dilapidação da ajuda financeira externa, pela repressão e por assassinatos políticos. Mas o isolamento crescente, alimentado pela corrupção, culminou com protestos em massa: o estopim da queda de seu governo aconteceu em 21 de agosto de 1983, quando o jornalista e líder da oposição Benigno Aquino foi assassinado logo após sua chegada do exílio nos Estados Unidos. A morte de Aquino desatou uma onda de insatisfação popular contra Marcos, que culminou no apoio em massa para a eleição de Corazón de Aquino, viúva do líder assassinado.
Com o triunfo opositor nas urnas, Marcos foi forçado a se exilar das Filipinas, ainda sob proteção dos Estados Unidos, colocando o fim no regime ditatorial que resultou em centenas de mortes e dívidas externas multimilionárias. Com a inegável herança sangrenta da ditadura de Ferdinand Marcos, desde os flagelos diretos na carne com a dura repressão policial, até as dores no bolso e doídas memórias sobre os conflitos internos advindos dos de viver em estado de despotismo, não é difícil imaginar que falte justificativas para canonizar na mente social dos filipinos a Ditadura de Ferdinand Marcos como um marco inesquecível de crueldade sem fim, em que nada de substancial foi recebido para o “povo”, isto é, aqueles além de Marcos e seus apoiadores no seu projeto de poder.
Restaria então desses anos de ferro o resquício da ditadura como o duro ensinamento da importante, e constante, necessidade de combater os males autocráticos que constantemente ameaçam tomar como seus os instrumentos da política representativa. Nesse processo, a seguração da democracia não entende-se apenas como um direito, mas como um direito que necessita de constante reivindicação pelos cidadãos que querem desfrutar dela.
Não tarda essa idealização, ela é, no mínimo, contestada pelos próprios desenrolares da realidade: em 18 de Novembro de 2016, Ferdinand Marcos, que morreu no Havaí e teve seus restos mortais sendo constantemente negados entrada em seu próprio país natal como simbolismo de renúncia da oposição, foi transferido a Oahu por pedido do então presidente Rodrigo Duterte para o cemitério filipino de Libingan ng mga Bayani. A cerimônia de funeral, acompanhada por família e amigos, era claramente um gesto de reverência de Duterte para Marcos, como em parcimônia com o seu status como “herói” filipino.
O governo recente de Rodrigo Duterte (2016-2022) não é contrário nem à violência da ditadura de Marcos, nem ao do seu próprio governo. Marcado pela sua personalidade de “garanhão” e por “falar o que quer”, Duterte deu personalidade ao seu período de regência pela sua forte caracterização da instrumentalidade da violência como fim de realizar os interesses do Estado. Exemplo claro disso se faz naquela que se mostra a principal política de governo: A guerra às drogas, impiedosa e cruel, a batalha eterna de Duterte contra o narcotráfico (que o mesmo considera o maior inimigo da nação filipina) se provou sem demora uma matança sem sentido, os julgamentos, aprisionamentos, processos, e assassinatos extrajudiciais se tornaram onipresentes formas de repressão, com várias fatalidades e com homicídios sem resposta.
A iniciativa de Duterte foi respondida com horror por vários órgãos internacionais e chefes de Estado, e internamente por vários competentes críticos, que receberam da administração de Duterte um tratamento de ferro, sendo claro exemplo disso a jornalista Maria Ressa, fundadora do site Rappler e vencedora do Nobel da Paz 2021, perseguida devido à reportagem por parte dela (e de seu jornal) sobre as infrações e abusos de poder no decorrer da guerra às drogas.
O presidente filipino entrou em desavenças também devido sua reaproximação com a economia chinesa - em contraponto à histórica tendência de aproximação por presidentes anteriores de continuar iniciativas de parceria américo-filipinas, especialmente na área militar- o que gerou críticas e debate especialmente devido ao que tange à necessidade de assegurar a autoridade filipina sobre sua própria costa marinha. Não obstante, dados indicam que Duterte era um dos líderes mais famosos recentes na história filipina, e sua filha Sara Duterte, presente na vida política assim como seus outros filhos, se elegeu junto com Marco Jr., na posição de vice-presidente.
Se as iniciativas de Duterte são em vários sentidos, consideradas contrárias às vontades da população filipina, como pôde então, se passar por um populista? E como Bongbong Marcos Jr, filho do ex-ditador Ferdinando Marcos, consegue se passar por uma figura “do povo” apesar de fazer parte de uma família historicamente aristocrática e se eleger à presidência em 2022? A resposta provavelmente está, justamente, nas condições materiais que fazem das Filipinas ainda um país alicerce à vontade de oligarquias arcaicas, alimentadas desde o tempo de sua colonização por outros impérios, aqui descritos, e desenvolveu formas particulares de acumulação entre famílias de poder.
Os processos de acumulação, configuração de poder e formação de ordens sociais são sempre dinâmicos e estão ancorados a condições históricas particulares (COX, 2002). Entretanto, embora tenham se alterado em várias conjunturas ao longo do século XX, nunca houve uma transformação qualitativa na estrutura de poder nas Filipinas, cristalizada ao redor da herança colonial agrária e da burguesia rentista. A ascensão de Ferdinand Marcos Jr. à presidência das Filipinas representa, como um resultado da reabilitação da imagem de sua família nas últimas décadas, o ponto mais alto da fragmentação de um consenso superficial sobre a conveniência de certas formas de governança democrática para o desenvolvimento das Filipinas (REID, 2006).
Durante os anos que antecederam esta eleição, ao longo da fragmentação do consenso estabelecido a menos de 40 anos atrás com a queda de Marcos Jr., a família Marcos trabalhou para estabelecer uma nova narrativa que associa o período em que estava no governo com uma era de crescimento e prosperidade, alegando que as Filipinas poderiam retornar se fossem devolvidas ao poder, com referências nacionalistas a um passado maior imaginado. Ao longo da campanha, as estratégias de “Bongbong” Marcos foram marcadas pela esquiva de debates políticos em proveito da utilização de vídeos — especialmente nas plataformas do YouTube e TikTok —, participação em programas de jornalistas afins e talk shows. Dessa maneira, Bongbong relacionou elementos de nostalgia do período do governo autoritário de seu pai com a divulgação de uma imagem popular e irreverente.
A campanha online projetava uma imagem tranquilizadora de liderança autoconfiante, recusando-se inflexivelmente a se envolver diretamente com qualquer um de seus rivais, prometendo trazer “unidade” por meio de liderança decisiva, lei e ordem, rápido crescimento econômico e grandes projetos de infraestrutura e alimentos acessíveis para a maioria dos filipinos. Sua campanha evitou qualquer crítica ao histórico de Marcos, como se fossem todas nada além de campanhas de difamação provenientes de adversários, enquanto distribuía um fluxo de positividade tóxica em grande escala por meio de vlogs revisionistas e postagens em mídia social.
Assim, a mais recente corrida presidencial das Filipinas mostrou-se excepcionalmente conturbada e decisiva para a história do país, tornando-se um marco para a reabilitação e revisionismo histórico sobre a figura do ditador Ferdinand Marcos. Por meio da campanha de Ferdinand Marcos Jr. e seu sucesso posterior, revelou-se as fraturas de uma ordem social frágil, estabelecida sobre as bases de uma redemocratização conveniente aos setores que detinham o poder. Dessa forma, o descontentamento popular pôde ser aproveitado e orientado de maneira conservadora e nacionalista, por táticas extra-eleitorais, primeiro por Duterte e então por Marcos Jr., evocando um passado célebre e higienizado: a ausência do conhecimento da história faz com que esta seja escrita por quem lhe faça jus.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALTMAN, Max. Podcast Hoje na História: 1986 - Ferdinand Marcos é deposto nas Filipinas. Disponível em: https://operamundi.uol.com.br/permalink/2973. Acesso em: 22 jul. 2022.
COX, Robert; SCHECHTER, Michael G. The Political Economy of a Plural World: Critical reflections on Power, Morals and Civilisation. London: Routledge, 2002.
GOMEZ, Jim. Dictator’s Son Marcos Jr. Takes Oath as Philippine President. Disponível em: https://thediplomat.com/2022/06/dictators-son-marcos-jr-takes-oath-as-philippine-president/. Acesso em: 22 jul. 2022.
HEYDARIAN, Richard Javad. A Counterrevolution in the Philippines: Marcos 2.0. Disponível em: https://thediplomat.com/2022/06/a-counterrevolution-in-the-philippines-marcos-2-0/. Acesso em: 22 jul. 2022.
MORAIS, Gabriel. Execuções e bilhões de dólares roubados: como foi a ditadura de Ferdinand Marcos, cujo filho pode ser eleito presidente das Filipinas - Jornal O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/execucoes-bilhoes-de-dolares-roubados-como-foi-ditadura-de-ferdinand-marcos-cujo-filho-pode-ser-eleito-presidente-das-filipinas-25502976. Acesso em: 14 jul. 2022.
PADDOCK, Richard C. Hero’s Burial for Ferdinand Marcos Draws Protests From Dictator’s Victims. The New York Times, 2016. Disponível em: https://www.nytimes.com/2016/11/19/world/asia/philippines-marcos-burial.html. Acesso em: 22 jul. 2022.
RAPPLER. 3 years later, 87% of Filipinos want gov’t to assert Hague ruling. Disponível em: l1nq.com/wxBqr. Acesso em: 22 jul. 2022.
REID, Ben. Historical Blocs and Democratic Impasse in the Philippines: 20 years after ‘people power’. Third World Quarterly, v. 27, n. 6, p. 1003–1020, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1080/01436590600850426. Acesso em: 22 jul. 2022.
REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Presidente filipino legaliza execuções feitas por policiais na guerra às drogas. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-18/presidente-filipino-legaliza-execucoes-feitas-policiais. Acesso em: 14 jul. 2022.
SWS. Social Weather Stations | Second Quarter 2019 Social Weather Survey: Pres. Duterte’s Net Satisfaction rating at new record-high “Very Good” +68. Disponível em: https://www.sws.org.ph/swsmain/artcldisppage/?artcsyscode=ART-20190708142248. Acesso em: 22 jul. 2022.
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