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Antecedentes do golpe militar e da crise política em Myanmar

Escrito por: Maria Eduarda Cater Souza Monteiro e Beatriz Silva Queirós

Protestos por democracia em Mianmar, Commons/Reprodução


A fim de entender os recentes acontecimentos políticos em Myanmar, país assolado por uma grave crise política, econômica e social, e governado por uma junta militar altamente impopular tanto interna como externamente, é pertinente a realização de uma análise histórica ressaltando o papel do Exército na vida política do país.



Panorama geral

Myanmar é um país localizado no Sudeste asiático que faz fronteira com a China, Laos, Tailândia e Bangladesh. Etnicamente, ele é composto por uma maioria birmanesa budista e outros 135 grupos étnicos divididos e relacionados com os estados. Tal diversidade étnica faz com que o país seja o cenário de diversas reivindicações que têm como principal objetivo a representação política de cada grupo e a justiça social para o povo de Myanmar. No entanto, tais direitos políticos muitas vezes não são contemplados pelo Estado, levando à formação de grupos armados com visões separatistas que serviram como um incentivo para a instituição de governos centralizadores e autoritários desde a independência do país, a qual foi formalizada em 1948 após a luta das forças armadas Tatmadaw, futuro Exército oficial de Myanmar. Desde a independência, o Exército se considera como fundador da União da Birmânia e força principal que evitou a desintegração do país durante a guerra civil, mentalidade que, ao longo da história, criou uma tradição bastante forte de presença do Exército na vida política de Myanmar.

Ditadura direta de 1962 a 1974

Após a independência, um governo constitucional foi formado. No entanto, esse governo civil não conseguiu manter a unidade do país frente a problemas domésticos relacionados a conflitos entre grupos étnicos, o que fez com que o governo convidasse os militares a cuidarem ativamente do Estado, implementando, em 1958, um regime sob os cuidados do General Ne Win, o qual realiza um golpe de Estado em 2 de março de 1962. Desta forma, a Constituição do país é suspensa, o Parlamento é dissolvido e um Conselho Revolucionário guiado pelos princípios do “socialismo birmanês” - o qual era baseado em um forte nacionalismo, nos princípios budistas e na filosofia marxista - passa a governar Myanmar por decretos, dando início ao governo militar direto que se manteria até 1974.

Queda da ditadura e surgimento do NLD

Em 1974, juntamente com as eleições que concederam o título de primeiro-ministro ao General Ne Win, surgem inúmeros protestos contra a escassez de comida, corrupção e o declínio da economia. Essa intensificação de mobilizações fizeram com que em 1988, após anos de luta e repressão violenta, Ne Win renunciasse e eleições fossem anunciadas para o ano de 1990. Todavia, a esperança foi novamente desmantelada quando, após um mês da renúncia, a junta militar conhecida inicialmente como SLORC traz de volta o governo militar direto, mantendo-se no poder até 30 de março de 2011.

Vale aqui destacar que foi justamente em meio aos movimentos protestantes no final da década de 80 que Ang San Suu Kyi, filha do falecido general Ang San, aclamado nacionalmente por sua participação na independência do país, ergueu sua voz para reivindicar pela democracia e direitos humanos em Myanmar. Passando de discursos em praças abertas em 1988 para a liderança e fundação do partido da Liga Nacional da Democracia (NLD), Suu Kyi aumentou sua reputação tanto no cenário interno quanto externo, estando, no entanto, sempre sujeita ao poder da junta militar do país.

Receosos pela atuação da ativista política, o governo central a condenou à prisão domiciliar em diferentes ocasiões - no ano de 1989 e em 2010 -, impossibilitando-a de trabalhar com seu partido em períodos de eleições parlamentares, as quais, ainda assim, foram ganhas pelo NDL tanto em 1990 - embora os resultados não tenham sido reconhecidos pelos militares - quanto em 2012.


Eleições de 2015

Seguidos quatro anos sob um regime nominalmente civil, o ano de 2015 trouxe novas perspectivas para a política de Myanmar, incluindo uma eleição geral multipartidária ao final do ano e negociações para cessar fogo entre organizações étnicas armadas e o governo nacional. Embora tais processos possam ser vistos como medidas esperançosas e progressivas para uma democracia justa e pacífica, entende-se aqui que as tensões e turbulências no país continuaram a acumular-se no decorrer do ano.

As eleições, já limitadas pelo partido governista (USDP) pela sua reserva de 25% dos assentos do Parlamento, contaram com diversos regulamentos que colocaram em dúvida o princípio da liberdade envolta no processo. Após a recusa por parte do governo central em acatar as emendas constitucionais do NLD, principalmente em relação à progressiva redução da cota de assentos parlamentares reservados para o partido USDP - presente na Constituição de 2008 -, a Union Electoral Commission divulgou limitações quanto ao período de campanhas eleitorais e às críticas feitas aos militares ou à Constituição vigente. A despeito disso, o partido NLD garantiu 77,9% dos 327 assentos na Pyithu Hluttaw (casa baixa do parlamento) e 80,3% dos 168 assentos na casa alta, Amyotha Hluttaw, conquistando também, por sua maioria, o direito de escolher um de seus partidários para o cargo da presidência do Estado. Em contraposição, o partido USDP conseguiu um total de 117 assentos.

O reconhecimento militar e de seu partido aos resultados eleitorais de 2015 trouxeram, além de grande surpresa, uma certa credibilidade para a promessa de executar pequenos passos para uma democracia real, a qual até então não passava de uma ação experimental. Contudo, isso novamente não significou um arrefecimento das tensões entre os dois partidos existentes.

As tentativas frustradas do NLD de implantar emendas constitucionais e a criação do cargo de Conselheiro de Estado, ocupado desde sua formulação por Suu Kyi, levantaram suspeitas de um possível afastamento do grupo militar do poder político. A insatisfação gerada por tais realizações levaram o partido USDP a levantar críticas ao NLD e acusações de irregularidades ainda no período de campanhas eleitorais de 2020.

Eleições de 2020

Mesmo diante de críticas fortes quanto à sua ineficiência na solução de conflitos armados e remediação do genocídio realizado pelo exército à população Rohingya, o NLD ganha as eleições com maioria partidária (82% do total de assentos) e, novamente, obtém poder de escolha quanto ao cargo presidencial. Diferentemente do cenário de 2015, a vitória brutal do partido não foi aceita pelo exército nacional, acusando fraude nas eleições e demandando uma averiguação dos votos, pedido rejeitado pela Union Election Commission. Insatisfeitos com o cenário, no dia 1 de fevereiro de 2021, sob alegação de não pactuar com resultados de eleições fraudadas, a junta militar Tatmadaw profere um golpe e condena Aung San Suu Kyi e seu governo eleito.

Assim, percebe-se o início de mais um período de repressão armada a protestos, agravamento do êxodo e intensificação da crise econômica. Após o golpe, o cenário encontrado é da criação de um Governo Paralelo de Unidade Nacional por indivíduos pró-democracia com declaração de uma luta armada, incêndios em casas e vilas por parte do exército a fim de causar medo e limitar mobilizações, redução de empregados em grande parte das fábricas localizadas na Zona Econômica Especial de Thilawa, aumento de greves como forma de protesto e queda de mais de 20% na entrada de navios comerciais no porto de Yangon (NITTA, SATO, 2022, tradução nossa).

Conclusão

Conclui-se que a história política de Mianmar é marcada por avenças e desavenças constantes, distanciando a construção de um governo democrático. Tendo em vista o histórico aqui traçado, entende-se que o golpe de 1 de fevereiro de 2021, fatal para a soberania popular, não destoa das demais ações empregadas pelas juntas militares do país ao decorrer da história. Muito embora o exército tenha formalizado em discursos um interesse pela transição para a democracia, seu afastamento de cargos de poder nunca apresentou indícios de ocorrência, uma vez que instrumentos - como o artigo na Constituição de 2008 em respeito aos assentos reservados no parlamento - foram criados e continuam ativos para garantir a permanência desse grupo e de seus interesses, os quais são apresentados como os “interesses nacionais”. Por fim, na esperança de novas eleições em 2023, resta a indagação: qual postura poderiam adotar tanto os atores nacionais quanto internacionais a fim de romper este ciclo vicioso e guiar Mianmar em direção à democracia popular?

REFERÊNCIAS

HTUT, Ye. The 2020 Myanmar General Election: another turning point?. Southeast Asian Affairs, Queenstown, p. 255-272, nov. 2020.

MCCARTHY, Stephen. Myanmar in 2015: an election year. Asian Survey, California, v. 56, n. 1, p. 138-147, fev. 2016.

MILITARY In Politics: Myanmar. [Si]: Cna Insider, 2021. (48 min.), son., color. Legendado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iuINrF4ycyI. Acesso em: 16 jun. 2022.

NIKKEI ASIA. Myanmar military won't dissolve Suu Kyi's NLD party: official: postponing decision seen as bid to lend credibility to 2023 election. 2022. Disponível em: https://asia.nikkei.com/Spotlight/Myanmar-Crisis/Myanmar-military-won-t-dissolve-Suu-Kyi-s-NLD-party-official+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 16 jun. 2022.

NITTA, Yuichi; SATO, Masaru. Myanmar’s military takeover: one year on. 2022. Disponível em: https://asia.nikkei.com/static/vdata/infographics/military-takeover-one-year/. Acesso em: 22 jul. 2022.


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