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A cultura tibetana e a política de sinificação


© Imagem: Central Tibetan Administration.


Escrito por: Eloáh Ferreira Miguel Gomes da Costa¹.


Isolado por paredes naturais e situado sob condições climáticas desfavoráveis, o Tibete estabeleceu uma cultura ímpar, desde sua estrutura social, intimamente ligada ao budismo tibetano, até sua organização política interna. No entanto, essa composição vem sendo ameaçada pela política de desenvolvimento e modernização implementada na região pelo governo chinês, o qual objetiva a solidificação de sua soberania em relação ao Tibete.


Enquanto o Dalai Lama e o governo exilado do Tibete na Índia buscam manter a questão tibetana viva internacionalmente e colocam a China em uma posição defensiva dentro do cenário global, no que diz respeito às ofensas aos direitos humanos cometidos pelos chineses contra os tibetanos, o Partido Comunista Chinês retraiu-se das negociações após o anúncio repentino do Dalai Lama sobre o novo Panchen Lama em 1995, pelo qual o líder espiritual alegou que a busca e o reconhecimento da reencarnação é uma matéria religiosa e não política, o que foi visto pela China como um ato político hostil e esta passou a se concentrar na mudança étnica e econômica do Tibete.


No final da década de 90, o discurso do Dalai Lama concentrou-se na preservação da cultura, língua e religião tibetanas, independente da aceitação ou afastamento da soberania chinesa sobre a região. Em 1997, o líder religioso e político enviou uma carta para Jiang Zemin, presidente da China na época, em razão da morte de Deng Xiaoping, na qual afirmou “permanecer comprometido com a crença de que o problema [questão tibetana] pode ser resolvido através de negociações, em um ambiente de sinceridade e abertura”, conforme cópia disponível no International Campaign for Tibet (1997 apud GOLDSTEIN, 1997, p. 112, tradução minha), porém a China deixou de acreditar no sucesso dessa forma de solução devido à reivindicação pelo líder tibetano da autonomia política da região.

Dentro desse cenário, cresceu na China a campanha anti-Dalai Lama, da qual tem-se a convicção de que a morte dele encerraria a discussão, a força do setor político que defende a soberania chinesa sobre o Tibete de forma mais radical e o desenvolvimento da região tibetana sob o comando do governo chinês, com o objetivo de “criar uma nova geração de tibetanos que consideram seus interesses ser parte da China” (GOLDSTEIN, 1997, p. 110, tradução minha).


Antes de adentrar nas consequências para a cultura local desse desenvolvimento, é preciso destacar que antes de 1951, segundo a China, o Tibete se encontrava “sob uma servidão feudal caracterizada por uma ditadura de monges e nobres da classe alta. As grandes massas de servos desejavam ansiosamente quebrar as algemas da servidão” (REPÚBLICA POPULAR DA CHINA, online, tradução minha). Esse pensamento teria resultado no Acordo dos Dezessete Pontos, segundo o qual o governo central não implementaria a reforma coercitivamente e esta seria realizada pelo governo local. No entanto, parte da classe dominante, a fim de manter a servidão e seus interesses, teria sabotado o acordo, dando suporte a organizações ilícitas que recorriam a rebeliões e ataques violentos, tendo inclusive o apoio dos Estados Unidos. Assim, o Dalai Lama teria mantido contato com o governo chinês, o qual exigia que o governo local detivesse os “rebeldes”, porém o Dalai Lama foi levado para a base deles, o que teria culminado na ida do líder tibetano para a Índia quando os “rebeldes” falharam. Dessa forma, a ação chinesa na região em 1959 teria sido uma resposta a forças rebeldes.


A partir disso, faz-se necessária uma ressalva quanto ao uso de certos termos ocidentais pela China e pelos estudiosos sobre o tema, visto que o acesso a fontes asiáticas é limitado, não só pela barreira linguística, mas também pela dominação por meio da exclusão: fala-se sobre o outro em vez de dar a oportunidade de falar ao outro. Em uma tentativa de legitimar sua atuação na região, a China alega que promoveu o desenvolvimento econômico e social do Tibete feudal, como se o feudalismo europeu se enquadrasse facilmente na experiência tibetana.


Além disso, é preciso ter uma visão crítica quanto ao uso de termos como “civilização”, “desenvolvimento” e “Estado-nação”. Circunstâncias culturais e econômicas que na visão ocidental são tidas como avançadas são diferentemente interpretadas, em razão de valores distintos, por uma sociedade que se manteve isolada na maior parte do século passado. É preciso considerar que conceitos ocidentais não podem ser aplicados dentro do contexto asiático sem as devidas considerações e ressalvas, mesmo que a própria China faça uso deles, o que demonstra uma submissão a perspectivas ocidentais para se introduzir no cenário global e até para legitimar suas ações, principalmente no que tange à soberania e ao recente conceito de “Estado-nação”, tendo em vista o desenrolamento histórico entre Tibete e China quando do domínio mongol.


Culturalmente, é aceito no Tibete a poliandria, segundo a qual irmãos possuem a mesma esposa, prática mais difundida na área rural e excepcional, já que a monogamia é majoritária. Tal prática remete à imoralidade segundo o pensamento ocidental, mas essa realidade tibetana está intimamente ligada à importância cultural da gradação da idade natural, que determina o marido principal, ao fortalecimento e estabilização do núcleo familiar, à limitação do crescimento populacional e à necessidade de não deixar a esposa sozinha por longos períodos, já que um marido pode se ausentar, viajando, por muito tempo, devido às condições climáticas da região.


Por outro lado, no Tibete, aquele que cometeu um crime será o único punido, de forma que a pena não atinge seus parentes, “lei criminal assim praticada apenas nos dias modernos em outros países [inclusive no Ocidente] que já era estabelecida na antiguidade no Tibete” (NAKAMURA, 1964, p. 302, tradução minha). O que, segundo o entendimento ocidental, seria um traço de uma sociedade civilizada e desenvolvida mostra a relativização desses termos e a assimilação errônea que induzem, conforme os exemplos citados, principalmente quando cruzadas fronteiras culturais.


Entre os séculos VII e IX, o Tibete passou por grandes mudanças estruturais, como a criação de uma administração, aumento das fronteiras do reino da época e, culturalmente, o surgimento de um sistema de escrita decorrente do sistema indiano. Além disso, o budismo foi declarado a religião oficial e, no século XI, os mosteiros se tornaram os lugares centrais da vida social e cultural do Tibete. O diálogo cultural com a Índia foi uma das razões que levaram a China a entrar no Tibete em 1950, o que culminou no Acordo dos Dezessete Pontos e, posteriormente, na revolta tibetana de 1959, subjugada pelo exército chinês.


A partir de então, o governo tibetano no exílio manteve-se evidenciando a violência sofrida pela população tibetana sob o domínio chinês, sendo a ofensa aos direitos humanos uma das questões que mais se destaca no contexto internacional recente. “O governo tibetano exilado [...] revelou em 1984 que desde a invasão, mais de 1,2 milhões de tibetanos morreram como resultado da invasão chinesa. Isto foi compilado após anos de análise de documentos, declarações e entrevistas de refugiados e por delegações oficiais enviadas ao Tibete pelo governo tibetano entre 1979 e 1983”, conforme Tseten Samdup (1993 apud GUITTARD, 2018, p. 49, tradução minha).


Além da violência à qual é submetida a população, o governo chinês vem cerceando também a cultura. Sabe-se que a identidade cultural é um fator importante na composição de uma nação soberana, embora não determinante, como mostra a existência de Estados multiétnicos, e o que tem ocorrido no Tibete é o apagamento da cultura tibetana por meio de uma política de sinificação, pela qual a China promove uma assimilação cultural na região a fim de espalhar sua cultura.


Isso ocorre através da imigração chinesa para a região, muito incentivada pelo governo chinês, e o estabelecimento de uma indústria turística, que reitera que o Tibete faz parte da China e cujos retornos pertencem aos chineses. Ressalta-se que até algumas décadas atrás, a população tibetana usufruía de um isolamento considerável. Segundo o Dalai Lama, “se os chineses Han, o maior grupo étnico da China, estão se estabelecendo no Tibete, eles devem adotar a língua e cultura tibetanas” (apud GUITTARD, 2018, p. 49, tradução minha). No entanto, o que se verifica é a mitigação da cultura tibetana dentro de sua própria região.


O documentário canadense What remain of us (2004) mostra a restrição da liberdade de expressão e religiosa imposta pelos chineses no Tibete, pois falar sobre política na rua, discutir sobre a causa tibetana ou admitir lealdade ao Dalai Lama pode colocar a segurança da pessoa e de sua família em risco. Quando questionados se nos mosteiros há liberdade, um dos monges responde que é necessária a autorização do governo chinês para que os grandes lamas (líderes espirituais) os ensinem. Outra questão é a destruição de mosteiros, objetos e lugares religiosos e a execução ou prisão arbitrária de líderes espirituais, uma realidade existente desde 1950, e, tendo em vista que a religião é a base estrutural da sociedade tibetana, são claros os custos dessas ações para a cultura local. Além disso, outras medidas tomadas pelo governo chinês foram a propaganda antirreligiosa na China e a imposição de tributos aos mosteiros e do trabalho forçado aos monges. “Para que o modo de vida tibetano desaparecesse, os chineses não poderiam encontrar outro método melhor do que suprimir a liberdade de crença e as instituições religiosas” (GARCÍA, 2015, p. 23, tradução minha).


Além disso, verifica-se a expansão do mandarim em detrimento da língua tibetana, pois as escolas são chinesas, o que propicia a educação de uma geração inclinada a ver como verdade um Tibete que pertence ao Estado multiétnico chinês. Um estudante universitário revela, no documentário (2004), que desde a infância tem sido ensinado em mandarim e que aprender tibetano é praticamente inútil, sendo que a geração atual tem dificuldade em falar a língua local. Percebe-se que os tibetanos acreditam que o retorno do Dalai Lama é a solução, embora reconheçam que a China é poderosa. A narradora conta que há uma crença no Tibete de que eles perderam seus país porque não rezaram o suficiente, mas ela, por ter crescido no Ocidente, diz que às vezes acha que os tibetanos perderam seu país porque tudo o que fizeram foi rezar, o que mostra a necessidade de se adequar ao mundo globalizado e não a necessidade do mundo globalizado de respeitar seus próprios limites.


A dominação do governo chinês fomentou protestos ao longo do tempo, dentre os quais se destacam a revolta de março de 1989, na qual monges, freiras (termo decorrente da tradução, mas não necessariamente o correto para designar mulheres com papéis religiosos dentro do budismo tibetano) e tibetanos se reuniram no mosteiro de Jokhang e sofreram uma repressão violenta dos chineses, e os protestos de março de 2008, um pouco antes dos Jogos Olímpicos, espalhados pela região, que também sofreram respostas violentas, o que atraiu a atenção de outros países devido à violação aos direitos humanos, em concordância com a preocupação atual da comunidade internacional com a matéria, ao menos em teoria.

Entre 2009 e 2013, mais de cem tibetanos se suicidaram, inclusive colocando fogo em si mesmos, como uma forma de protestar contra a política chinesa no Tibete. Apesar das repercussões ao redor do mundo, tendo inclusive motivado um pronunciamento do Departamento Estatal dos Estados Unidos em 2012 em um relatório acerca dos direitos humanos no mundo em 2011, a China alegou interesse dos países em desestabilizar a região e afirmou que o Tibete está vivendo um desenvolvimento econômico e social contínuos.


Outra questão é que a chamada “modernização” da região não é bem recebida pelos tibetanos, que consideram que sua terra está sendo machucada. A exploração do território pela China é mais uma agressão sofrida pelos nativos em prol de um desenvolvimento econômico às custas da natureza e da saúde de sua terra. Ainda, os benefícios dessas atividades econômicas permanecem nas mãos dos chineses.


Segundo García (2015), o Dalai Lama não exige mais a independência do Tibete, apenas a autonomia efetiva da região, a fim de se preservar a identidade tibetana, como mostra o Memorando sobre uma Autonomia Genuína para os Tibetanos, apresentado à China após os eventos de 2008, porém o governo chinês recusou e, atualmente, não se mostra disposto a dialogar e a ceder, ainda mais considerando-se sua atuação na escolha de líderes religiosos tibetanos, que por possuírem demasiada atuação política revelam a profundidade da interferência chinesa, a avançada idade do atual líder tibetano e a improbabilidade dos Estados Unidos e da Europa em atuar ativamente a favor do Tibete e, consequentemente, contra a China.


A conjuntura corrente aponta, se não para a extinção, para a manipulação da cultura tibetana pela China dentro do conceito de soft power. O budismo tibetano e a figura do Dalai Lama são bem difundidos no Ocidente e promovem uma visão bonita e pacífica da região, o que a China usa como ferramenta de propaganda para alavancar a indústria do turismo no território. Essa forma de agir condiz com a imagem que o Partido Comunista Chinês quer projetar no exterior, como um país multiétnico que protege todas as suas minorias. Assim, a política de sinificação da cultura tibetana em seu próprio território busca assegurar a soberania da China sobre a região, sendo que a cultura é exaltada apenas quando a oportunidade favorece os interesses chineses.


¹Estudante do 5° ano de Direito pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (migueleloah@gmail.com).

REFERÊNCIAS


GARCÍA, E. C. Tibet made in China [Projeto de pesquisa]. Barcelona: Faculdade de Ciências da Comunicação, Universidade Autônoma de Barcelona, 2015.


GOLDSTEIN, M. C. The Snow Lion and the Dragon: China, Tibet, and

the Dalai Lama. Berkeley: University of California Press, 1997. Disponível em: http://ark.cdlib.org/ark:/13030/ft2199n7f4/. Acesso em: 20 dez. 2020.


GUITTARD, J. Internal Conflict in Tibet (China). International Journal of Latest Research in Humanities and Social Science, França, v. 1, questão 8, p. 47-52, 2018. Disponível em: http://www.ijlrhss.com/vol1-iss8.html. Acesso em: 03 dez. 2020.


NAKAMURA, H. Ways of thinking of eastern peoples: India, China, Tibet, Japan. Honolulu, Hawaii: East-West Center Press, 1964.


Tell you a true Tibet: Origins of So-Called “Tibetan Independence”. The National People’s

Congress of the People’s Republic of China. 18 mar. 2009. Disponível em: http://www.npc.gov.cn/zgrdw//englishnpc/Special_NPC_Delegation/2009-03/18/content_149

3948.htm. Acesso em: 02 dez. 2020.


WHAT remains of us. Direção: François Prévost. Canada: Nomadik Films e The National Film Board of Canada, 2004. 1 DVD. (77 min).

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