Escrito por: Felipe Augusto Antunes de Mesquita Luna¹ e Helena Lucchesi²
A região do Iraque é historicamente uma construída pela disputa de poder. A guerra do golfo perpetrada pelos Estados Unidos como uma resposta aos ataques terroristas de 2001 às torres gêmeas deixou profundas marcas no território Iraquiano, e só teve seu fim direto em 2011 com a retirada das tropas da região por parte do governo americano. Porém, em 2014 e até os dias de hoje houve uma nova intervenção estadunidense, que se deu a mando de Barack Obama, na região. Estas intervenções possuem um viés ideológico claro, bem como um interesse econômico. Há um grande choque de culturas entre o modo de vida americano e o modo de vida islâmico.
Certas atitudes culturais de um povo soam como opressão para os outros, a exemplo do uso das burqas pelas mulheres islâmicas. Estas visões sobre certo e errado, sobre liberdade e opressão, motivam todo o complexo militar e industrial dos Estados Unidos a promover uma campanha midiática e ofensivas bélicas contra o Iraque na esperança de espalhar suas crenças e sua visão de mundo. A pergunta que fica é: O que se tem a ganhar ao promover esse tipo de atitude? É uma questão complexa, mas que pode ser observada através de dois aspectos: A Cultura Liberal dos Estados Unidos e a eterna necessidade de expansão do Imperialismo Norte-Americano.
De um lado, temos o crescente mercado capitalista dos Estados Unidos sempre em busca de mão de obra e de matéria-prima, em particular do petróleo e seus derivados, entrando uma região que possui grupos que, ao promoverem os ataques de 11 de setembro, “justificaram” na mentalidade coletiva do Ocidente qualquer absurdo que pudesse ser feito em retaliação. Deste modo, a região do Iraque, rica em produtos do interesse americano e com uma população que pouco consome seus produtos, torna-se alvo fácil do Imperialismo.
Do outro lado, para justificar e enraizar ainda mais o conceito de “guerra justa” na mentalidade da população do ocidente, o pensamento liberal que perpetua a ideologia americana no mundo encara os costumes do oriente como oriundos de uma religião que não é libertadora e sim extremamente opressora, ignorando qualquer avaliação de cunho racional acerca de valores culturais e exporta de forma hostil sua visão de mundo. Não é dizer que o Oriente seja um paraíso de direitos humanos, mas compreender que por serem culturas diferentes, necessariamente os valores que perpassam a psicologia do povo em questão são diferentes. Nesse sentido, é muito fácil achar indivíduos criticando o uso de burqas e fragilizando mulheres do oriente médio e afins sem compreender que isso parte de uma escolha e de um respeito às tradições religiosas da região.
Este fenômeno recebe o nome de “Complexo do Salvador Branco”, pois está intimamente associado ao modo de pensar das classes médias-alta e acima do Ocidente, que são historicamente compostas por homens e mulheres brancos cujo pensamento tem origem no pressuposto de que são mais civilizados que o restante. É, por vezes, sutilmente transposto a sociedade como um todo quando se vê, em rádios e televisões, matérias jornalísticas tendenciosas criticando, sem embasamento teórico algum, os costumes de outro povo, normalmente culturas tradicionais do Sul Global, postos como inferiores em termos de desenvolvimento e tecnologia, por exemplo.
Portanto, podemos observar que as tendências predatórias do imperialismo norte-americano aliadas as matérias jornalísticas liberais, promovidas sem o uso de um aparato crítico e de uma compreensão cultural das tradições do oriente, trazem muitos danos a sociedade humana como um todo e promovem um dos mais desgastantes e terríveis conflitos que a humanidade já teve o desprazer de presenciar. A Segunda Guerra Mundial durou por volta de 6 anos. A invasão ao Iraque já dura mais de 20 anos. Felizmente, internamente no Iraque há um bom número de movimentos sociais que visam lutar contra os impactos negativos dessa invasão.
Apesar de pouco conhecido e, muito menos, referenciado dentro do Ocidente, o movimento feminista no Iraque, em relação a outras regiões do Oriente Médio, é um dos mais expoentes, inclusive, comparativamente, mulheres iraquianas apresentaram, por muito tempo, a maior quantidade de direitos, para com semelhança aos homens, da região. Claro, isso não quer dizer que nunca sofreram e, ainda sofrem, com abusos e desigualdades, mas desde o início do século XX, de acordo com Nadje Al-Ali, a luta das mulheres no Iraque sempre esteve muito envolvida com todas as agitações político-sociais responsáveis por mudar o quadro histórico do país. Aplicando um recorte de gênero, esses movimentos buscavam evidenciar e dar enfoque na pauta da desigualdade e injustiças sociais baseadas na diferença estabelecida entre homens e mulheres.
Foi durante o protetorado inglês sobre o país que a primeira associação de mulheres foi estabelecida, a Women 's Awakening Club (1923), através dela foi possível, para as mulheres, organizar-se política e socialmente, inclusive participando dos movimentos nacionais de independência contra a colonização. Menos de duas décadas depois, em 1940, com uma proposta de apoio à democracia e luta contra a erradicação do analfabetismo feminino, surgiu o Women 's League Against Nazism and Fascism. Com o passar dos anos, as associações foram se solidificando e outras sendo estabelecidas, variando um pouco em suas metas e foco de atuação, por exemplo: a Iraqi Women's Union realizava trabalhos voluntários, voltava-se para a educação de mulheres e buscava estabelecer uma rede (networking) de mulheres entre as diferentes organizações; já a Iraqi Women's League, cresceu consideravelmente nos anos 50 e focava nas questões da mobilização política e da promoção de trabalho mais humanitário.
Outras mais existiram [e ainda existem], contudo, sua luta e (re)existência foram severamente abaladas após a Guerra do Golfo, em 1991, os direitos conquistados ou a título de serem, começaram, rapidamente, a regredir por conta do regime de Saddam Hussein e o fato de passar a aplicar na política, tradições islâmicas e tribais conservadoras, a fim de consolidar seu poder. Para piorar a situação, as sanções impostas pela ONU ao Iraque corroboraram para a deterioração dos direitos às mulheres no que tange saúde, educação e economia. "Essa soma de fatores resultou em impactos negativos aos direitos das mulheres, sendo um verdadeiro retrocesso no seu status legal, no sistema criminal de justiça e nas leis de status pessoal" (CASSOL; DALL'ÁQUA; CHIUZA, 2020, p. 115).
A partir deste breve balanço histórico tiramos que, ao contrário daquilo difundido pelo senso comum ocidental: a visão da mulher oriental como vítima, incapaz de agir dentro de sua própria sociedade controlada por homens maus e que, portanto, precisa ser salva por homens do Ocidente e seu ideal de civilização para, somente assim, ser empoderada e ter uma condição de vida melhor; é errônea, equivocada e carregada de elementos do "Orientalismo". Orientalismo, termo cunhado por Edward Said, pode ser aqui entendido como o discurso criado a muitos séculos pelo Ocidente para definir, caracterizar e subjugar o que é o "Oriente". Suas diferentes civilizações, os indivíduos e tudo proveniente de lá são inseridos em um único termo pejorativo e que carece de multiplicidade. Um discurso que, por sua vez, implica em diversos símbolos e significados reducionistas, dicotômicos e preconceituosos sobre o Oriente, por exemplo, ao entender a forma de organização social e ideias ocidentais como superiores e, por isso, fins últimos de todas as sociedades.
Vai ser esse mesmo orientalismo que distorce a figura da mulher oriental, sua história e todo seu movimento de luta, compreendendo-a como um agente passivo, mas digno de salvação. Por fim, apagando, a luta das mulheres iraquianas no decorrer do espaço-tempo. É como G. Spivak escreve, em relação aos discursos norte-americanos realizados ao longo da "guerra ao terror" no pós-2001, dos quais, além de terem como base estereótipos presentes no imaginário comum, colocavam a questão de gênero e direitos das mulheres como um dos objetivos da intervenção assim, buscando justificá-la a partir da instrumentalização da mulher marrom como objeto de salvação.
São discursos racializados que servem para classificar os muçulmanos como bárbaros e não-civilizados, utilizando da narrativa do progresso e da modernidade para ocupar o Iraque como um gesto humanitário. Muitas vezes se trata da visão "homens brancos salvando mulheres marrons de homens marrons". (Spivak apud Abu-Lughod, 2013:33, tradução nossa).
A fim de explicitar como essa visão e discurso foram e continuam sendo utilizados no contexto do Iraque (a intervenção estadunidense e como a mulher é colocada dentro da situação), trazemos o estudo comparativo realizado no artigo "Orientalismo e a questão dos movimentos das mulheres no Iraque: desafios e reflexões" (2020). Nele, 20 notícias sob a temática mulheres-Iraque, escritas pelas cinco principais emissoras estadunidenses: ABC News, CBS News, CNN, FOX News e NBC News, no período entre 2003 e 2013, são analisadas a fim de compreender a forma pelo qual o discurso orientalista, promovido tanto pelo governo quanto pela mídia norte-americana, ofuscou a mobilização das mulheres iraquianas e sua capacidade de agência (CASSOL; DALL'ÁQUA; CHIUZA, 2020).
As três autoras concluem que, mesmo utilizando-se de um arco temporal amplo (10 anos), poucas foram as matérias escritas pelos maiores canais de comunicação norte-americanos sobre uma temática tão recorrente, o Iraque, mas partindo de um recorte de gênero. Em sua grande maioria, a religião islâmica foi utilizada como símbolo da opressão feminina, por conta do uso da burqa; os EUA e seus aliados retratados como salvadores (da pátria e das mulheres) por trazer paz e liberdade e, quando inseridos depoimentos das iraquianas, apareciam enxertos retratando abusos e violências realizados pelos homens muçulmanos ("terroristas") e o alívio sentindo pela chegada das tropas internacionais ("salvadores").
Contudo, a realidade não poderia ser mais diferente e também mais complexa do que simples caracterizações colocadas em oposição, de um lado muçulmanos dentro do escopo do "mal" e possuindo todas as características negativas e perversas, como "violentos", "terroristas", "não-civilizados" e "ignorantes"; enquanto do outro, as tropas internacionais sobre égide dos norte-americanos, do lado oposto, representando o "bem", a "salvação" e a "civilidade". Dados e relatos demonstram que a chegada dos americanos em solo iraquiano não trouxe avanços sobre o tema da igualdade de gênero, pelo contrário, os direitos das mulheres sofreram ainda mais reveses, a medida que além da política nacional ter se tornado mais controlada e conservadora como indica o texto "Ofensiva contra as mulheres no Iraque" (2018), houveram também os abusos por parte das tropas norte-americanas e da ONU. Huibin Amelia Chew (2008:90) vai além, explicando que na realidade a invasão do Iraque restringiu o acesso público das mulheres na região. No período de 2003 a 2013, pôde ser observado que as promessas de direitos a essas mulheres não foram atendidas e elas foram marginalizadas nos processos políticos e de reconstrução do Iraque (Khalid, 2011: 14) (CASSOL; DALL'ÁQUA; CHIUZA, 2020, p. 116).
Concluímos que, no referente ao recorte de gênero, as mulheres marrons, aqui analisadas a partir da luta histórica das iraquianas, são utilizadas como meros objetos, "armas guerra", tanto no sentido de serem vítimas diretas dos conflitos armados, como também utilizadas como instrumento para promover a violência. É a utilização dos corpos femininos e da retórica da "proteção" para justificar a guerra ao terror. O silenciamento e apagamento destas mulheres como sujeitos ocorrem devido não somente a naturalização do machismo embasado a partir patriarcado que estrutura a sociedade moderna, mas com forte influência de elementos, já mencionados acima, tão complexos quanto: o Orientalismo, o complexo do homem branco como salvador, a guerra ao terror e o imperialismo. Finalizamos assim com a seguinte indagação: Nós deveríamos querer justiça e direitos para as mulheres, mas podemos aceitar que podem existir diferentes ideias sobre justiça e que diferentes mulheres podem querer, ou até mesmo escolher, diferentes futuros daqueles que nós vemos como melhor? (Abu-Lughod, 2013: 43, tradução nossa).
¹Estudante do 4° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (felipelunamo@hotmail.com).
²Estudante do 3° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (helenalucafran@hotmail.com).
REFERÊNCIAS
ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim Women Need Saving? Massachusetts: Harvard University Press, 2013.
CASSOL, Luiza D.; DALL'ÁQUA, Maria Eduarda O.; CHIUZA, Sabrina C. Orientalismo e a questão dos movimentos das mulheres no Iraque: desafios e reflexões. Malala, São Paulo, v. 8, n.11, dez. 2020. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/malala/article/view/161810/167301>.
OFENSIVA contra as mulheres no Iraque. Esquerda Online, 19 de ago. 2018. Disponível em: <https://esquerdaonline.com.br/2018/08/19/ofensiva-contra-as-mulheres-no-iraque/>. Acesso em: 04 de out. 2021.
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