© Imagem: Reprodução/Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil | https://www.bunkyo.org.br/br/museu-historico/
Escrito por: Felipe Augusto Antunes de Mesquita Luna¹ e Helena Lucchesi²
O Brasil dos anos 80, em relação à comunidade internacional, foi um dos países com o cenário interno mais conturbado possível. Ao passo que a ditadura militar estava chegando ao ponto de se tornar menos repressiva, com certos movimentos sociais ganhando força, boa parte da instabilidade interna ainda era visível, com atos como o AI-5 ainda em vigor. O movimento “Diretas Já” ganhava força com o que viria a ser o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Social Democrata do Brasil (PSDB), dentre outros ainda não nomeados à época, algo que, por sua vez, contribuiu para uma imagem internacional de muita conturbação social. Para além disso, movimentos de ordem social como êxodos rurais estavam acontecendo em massa: “As mudanças no campo acarretaram um crescente êxodo rural, devido à concentração da propriedade e à expulsão do trabalhador, ou à perda da terra (pequenos proprietários, posseiros, etc), ou à ausência de trabalho (assalariados rurais).” (SANTAGADA, 1990, p.123)
Aliada à essa imagem civil de desordem, a economia brasileira atingia ápices negativos cada vez maiores nos indicadores econômicos, com inflações exorbitantes (hiperinflação) e correções monetárias quase diárias sobre os produtos em geral. Somente na década de 80 a moeda brasileira passou por três transformações, de Cruzeiro para Cruzado (1986) e de Cruzado para Cruzado Novo (1989), tamanha a desvalorização que a moeda sofria. O setor privado sofria com elevada carga tributária e redução de linhas de crédito, enquanto o setor público acumulava dívidas na casa dos bilhões e sofria redução de investimentos em políticas públicas. O século do milagre econômico, na década de 70, havia deixado uma esperança que não se concretizou nos anos seguintes. O preço do barril de petróleo aumentou absurdamente e as dívidas do governo brasileiro, dolarizadas, foram aos céus.
Inserido neste cenário, de intensa instabilidade e conturbações de caráter econômico, político e social, nos anos 80, desponta dentro da comunidade nipo-brasileira um novo movimento, de retorno às raízes (ao Japão). Comparativamente, apesar das distintas conjunturas internacionais e situações que cada país passava em sua determinada época, vemos que a busca por melhores condições de vida e promessa de prosperidade são ideias que acompanharam tanto os primeiros japoneses, ao início do século, em sua vinda ao Brasil como, décadas depois, o movimento de retorno por parte de seus predecessores ao Japão.
Com isto em mente, aqueles imigrantes japoneses que, na primeira metade do século XX, vieram ao Brasil à procura de trabalho e melhores condições de vida, já haviam se estabelecido em solo brasileiro, formado famílias e, até mesmo, tido filhos. Esses herdeiros da primeira geração (issei) são chamados de nikkei, termo derivado do símbolo japonês "2", que representa a segunda geração de japoneses no Brasil. E, apesar de possuírem nacionalidade brasileira, pelo fato de seus pais terem nascido no Japão e emigrado somente em idade adulta, apresentam um contato mais intenso e direto com elementos da cultura tradicional japonesa em relação às gerações posteriores.
Assim como seus progenitores, o elemento central que motiva os primeiros nascidos nipo-brasileiros a irem à terra do sol nascente, seja para se fixarem permanente por lá ou apenas temporariamente, também é o fator econômico. Esse movimento iniciado pelos nikkei, então em idade adulta e compondo a mão de obra ativa brasileira, ficou conhecido como dekassegui. Como bem resume Sandra Cecília em "Imigração Japonesa e Identidade Nacional" (2007):
Na década de 80, com o desenvolvimento econômico do Japão aliado à crise em que se encontrava o Brasil, teve início o movimento dekassegui. Os objetivos deste podem ser igualados aos motivos do princípio da imigração japonesa no Brasil, ou seja, sair para alcançar trabalho e acumular recursos no exterior para depois voltar ao país de origem. (Introdução, p. 11)
A palavra dekassegui em japonês significa algo como "trabalho fora de casa", originalmente utilizada para se referir ao movimento interno dos trabalhadores no Japão, majoritariamente das regiões Norte e Nordeste, que dependendo da época do ano, destaque para o inverno rigoroso, se dirigiam a zonas urbanas, como Tokyo e Osaka, a fim de encontrar trabalho e complementarem a renda. Sintetizando, é o termo japonês ao equivalente brasileiro da "migração sazonal". Contudo, a palavra adquire um novo sentido, agora também designada para os "trabalhadores de origem japonesa radicados no exterior (em países como o Brasil , Peru etc.), que se dirigem ao Japão em busca de melhores salários, suprindo a carência de mão-de-obra destinada, sobretudo, à realização de trabalhos menos qualificados neste país." (DE CASTRO, Marcos Luiz. 1994. p. 102)
A migração iniciou-se a partir de 1985 de forma espontânea, mas por conta do despreparo tanto do governo japonês como do brasileiro poucos eram os auxílios oferecidos para a realização das atividades necessárias para a travessia, desde o momento da viagem, até a fixação no Japão e a inserção dos trabalhadores no mercado formal a assistência formal era ínfima. Em virtude da desvinculação e pouco apoio de organismos sociais ou políticos, ao início do movimento, as condições de travessia eram precárias e, algumas ainda, feitas de forma ilegal.
Contudo, a partir de 1988, as entidades diplomáticas observaram um aumento do fluxo de emigrantes através da quantidade emitida de vistos. Como apontam dados registrados no Consulado de São Paulo, região que isoladamente concentrava mais de 70% dos pedidos de visto, em 1987 foram concedidos 5.842 vistos e, em contrapartida, 3 anos depois, em 1990, esse número contabilizou um total de 48.189 concessões. Os números observados e o grande aumento de pedidos de visto indicam que, majoritariamente, as viagens passaram a ser realizadas de maneira legal e dentro dos conformes necessários.
Com o rápido crescimento do afluxo de pessoas, agências especializadas foram sendo construídas para atuar diretamente no processo de migração, inclusive leis ou medidas políticas foram criadas e/ou modificadas para regulamentar o movimento, caso da Lei de Controle de Imigração (1990) que facilitou a entrada de imigrantes no Japão. Para além das dificuldades materiais encontradas por essas pessoas desde o momento que decidiam sair do Brasil até a sua estabilização em solo estrangeiro, outro fator de enorme impacto e influência sobre eles foi o elemento psicológico, seja em relação a maneira que eram vistos pelos outros ou pela própria forma que o indivíduo dekassegui se enxergava.
Primeiramente, em relação ao coletivo, para uma explicação mais recortada, este será dividido em dois, a visão para com o movimento dos descendentes japoneses vivendo em solo brasileiro e dos nativos vivendo propriamente em solo japonês. Muitos "japoneses" no Brasil viam o fenômeno como oportunista e reprovável, com isso, vários nipo-brasileiros relataram terem omitido para familiares e amigos o fato, deste modo, indo de forma escondida para o Japão. E, dentro da sociedade japonesa, para além do tratamento desvalorizado e pejorativo que recebiam, refletido, por exemplo, pelo fato de possuírem menos direitos trabalhistas que os cidadãos nascidos lá; "os trabalhos desempenhados pelos dekassegui eram conhecidos entre os japoneses como "3K": Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (penoso)." (DE CASTRO, Marcos Luiz. 1994. p. 103).
Podemos ver, mesmo de maneira breve, que a visão a respeito desses indivíduos era carregada de preconceitos nos dois países. Somando-se a isso, a questão da identidade, ou seja, com qual nacionalidade e povo se identificavam e como eram tratados pelos outros cidadãos, também desempenhou um importante fator na vida destes imigrantes. Pelo fato de apresentarem fenótipos orientais dentro do Brasil eram vistos como "estrangeiros" e "japoneses". Contudo, no Japão, apesar da semelhança física, pelo fato de nascerem em solo brasileiro, os costumes, a personalidade, os valores etc. (elementos que compõem nossa subjetividade) faziam com que fossem vistos como "ocidentais". Esse não reconhecimento pelas duas populações, fez com que os indivíduos dekassegui, em termos de identidade nacional, se deparassem com um abismo, ocupando uma posição de "não lugar". É um dilema presente na vida da maioria deles e, Sandra Cecília (2007), insere em seu texto diferentes enxertos de relatos pessoais que explicitam tal conflito e dicotomia:
Como para C.M.: "A verdade é que os brasileiros me consideram japonês e os japoneses acham que sou muito abrasileirado" (...) Para a nissei Elisa Hayakawa: "Eu que sou da segunda geração, assim como meus irmãos, não temos uma identidade definida. Não encontramos espaço, somos vistos como estrangeiros aqui no Brasil, simplesmente por carregarmos traços físicos japoneses e estrangeiros no Japão por apresentarmos o comportamento ocidental." (2007. p. 38)
É neste sentido que podemos resgatar a ideia de construção social do indivíduo a partir do conflito, como cita Zygmunt Bauman, ao se referir como o processo sendo algo que parte da quebra do particular em direção ao novo, isto é, uma identidade que se cria a partir dos conflitos que perpassa e está em constante mudança. A “identidade dekassegui” é um exemplo disto. Ao conflitar com a noção de identidade brasileira, se constrói como estrangeira e, ao conflitar com a noção de identidade japonesa, se constrói também como estrangeira. Essa falta de identidade, de “localidade”, faz com que a identidade dessa parcela da população seja ao mesmo tempo duas coisas, efetivamente não se tornando nada sólido e sujeito a mudança constante.
Apesar de a grande parte dos indivíduos dekassegui terem realizado a travessia ao Japão por conta de motivações de cunho econômico-material, o dilema em que, posteriormente se encontraram inseridos possuía raízes muito mais profundas: dizia respeito a sua própria identidade e subjetividade, com quem se identificavam mais, o "ser" brasileiro ou o "ser" japonês, e com qual nação, Brasil ou Japão, se sentiam cidadãos verdadeiramente pertencidos. Esse dilema causou ao mesmo tempo um sentimento de não pertencimento e de estrangeirismo e xenofobia em uma geração profundamente marcada pelas raízes do movimento da imigração, tanto para um sentido de ser quem nasceram, como ser quem descenderam.
¹Estudante do 4° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (felipelunamo@hotmail.com).
²Estudante do 3° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (helenalucafran@hotmail.com).
REFERÊNCIAS
DE ALMEIDA, Sandra Cecília Rosendo. Imigração Japonesa e Identidade Nacional. Monografia (Bacharelado em Relações Internacionais) - Centro Universitário de Brasília. Brasília. 2007.
DE CASTRO, Marcos Luiz. O fenômeno Dekassegui: Os trabalhadores nikkei brasileiro no Japão. São Paulo em Perspectiva, 8 (1): 102-106, janeiro/março 1994.
BARÃO, Naíke. Década perdida: entenda o que aconteceu na América Latina nos anos 80!. [S. l.], 18 mar. 2021. Disponível em: https://www.politize.com.br/decada-perdida-e-america-latina/. Acesso em: 14 set. 2021.
PINTO, Raphael Colvara. A construção de identidades na sociedade líquida. ANAIS DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA, Porto Alegre, v. I, n. 11, p. 1-6, 10 nov. 2017. Disponível em: https://editora.pucrs.br/anais/seminario-internacional-de-antropologia-teologica/assets/2016/11.pdf. Acesso em: 14 set. 2021.
IDEAL, TI. ALTERAÇÕES NA MOEDA BRASILEIRA A PARTIR DE 1942. Limeira, 2021. Disponível em: http://idealsoftwares.com.br/tabelas/tabela.php?id=351. Acesso em: 14 set. 2021.
SANTAGADA, Salvatore. A SITUAÇÃO SOCIAL DO BRASIL NOS ANOS 80. Estudos de Planejamento, [S. l.], p. 121-143, 1 jan. 1990.
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