Escrito por: Eloáh Ferreira Miguel Gomes da Costa¹.
A presença efetiva da mulher dentro do âmbito político se tornou uma possibilidade real a partir da Constituição de 1946 devido à instituição da não discriminação de gênero. Acompanhando o cenário internacional, marcado pela Primeira Conferência Mundial sobre a Mulher da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1975, foi estabelecido um Plano de Ação do Governo em janeiro de 1977, que tinha, dentre seus principais direcionamentos, a promoção da participação da mulher em decisões políticas.
Na Década da Mulher (1976 – 1885), assim nomeada durante a Conferência Internacional do Trabalho, o governo japonês ratificou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher aprovada pela Assembleia Geral da ONU e, internamente, sancionou a Lei de Oportunidade de Emprego Igualitário. Posteriormente, em 1996, foi criado legalmente o Conselho Deliberativo da Participação Igualitária, sendo um importante acontecimento na intenção de viabilizar uma sociedade com participação e oportunidades igualitárias para ambos os gêneros nos âmbitos econômico, social e político. Dessa forma, a aprovação da Lei Básica para uma Sociedade com Igualdade de Gênero no último ano do século passado, lei que tem como um dos princípios básicos a participação conjunta no planejamento e formulação de políticas, levou ao Plano para Igualdade de Gênero 2000, o qual determina a “expansão da participação das mulheres no processo decisório e de formulação de políticas” (Embaixada do Japão no Brasil, online).
Atenta-se para o fato de que não são estabelecidos como objetivos de forma direta a ocupação de cargos políticos por mulheres, apenas faz-se menção a uma atuação na construção de políticas públicas para a promoção da igualdade de gênero de forma sinuosa, sem especificação de objetivos concretos e claros.
Sob essa movimentação política internacional, é importante ressaltar a presença das mulheres nos cargos ministeriais, considerando que os ocupantes são apontados pelo primeiro-ministro. Em 1960, houve a primeira indicação de uma mulher para chefiar um Ministério, o da Saúde, Trabalho e Bem-Estar. Dois anos depois, uma nova nomeação ocorreu, no caso, para o Ministério da Ciência e Tecnologia. No entanto, contradizendo as políticas governamentais e a discussão internacional fomentadora da ascensão feminina em diversas áreas, até 1984 não acorreu a designação de pessoa do sexo feminino para a função superior dentro dos ministérios, sendo naquele ano indicada uma mulher para chefiar o Ministério do Meio-Ambiente. Apenas em 1989, duas mulheres ocuparam ao mesmo tempo o cargo superior de determinados ministérios e, desde 1998, pelo menos uma esteve presente na estruturação ministerial.
Dentro do discurso feito por Shinzo Abe, que se tornou primeiro-ministro em 2012, estava expressa a intenção de ampliar o papel da mulher na sociedade em prol da igualdade de gênero. Em sua primeira renovação de gabinete foram nomeadas cinco mulheres como ministras, três a mais do que na configuração anterior, sendo que a renovação ocorreu em doze pastas. Observa-se que essa mudança ocorreu em um momento de queda brusca da popularidade de Abe em razão de suas inclinações a alterar o pacifismo japonês consolidado na Constituição de 1946 e após um governo voltado para o afastamento da inércia econômica do Japão.
Por outro lado, ao anunciar os integrantes de seu novo gabinete em 2018, Shinzo Abe elucidou o contraste entre suas declarações de promoção feminina dentro da sociedade e da política e seu governo, visto que foi nomeada apenas uma mulher, Satsuki Katayama, como ministra.
Outro fator de peso é que as figuras femininas que se inserem no jogo político são de famílias economicamente e politicamente poderosas, além de terem uma formação acadêmica de alto padrão. Essa realidade dificulta a efetivação da igualdade de gênero na ocupação de cargos políticos e, consequentemente, nos demais setores sociais, já que a principal voz não consegue se fazer escutar pois está encarregada de cuidar da família, conforme a tradição do país, acentuada a nível regional, e presa a trabalhos com um retorno monetário insuficiente e atingido pela desigualdade de tratamento e remuneração em relação ao trabalhador do sexo oposto.
Destaca-se que, desde a Segunda Guerra Mundial, o cargo de primeiro-ministro foi ocupado apenas por homens e a proporção de mulheres na Dieta, órgão de maior poder dentro da estruturação governamental japonesa e titular do poder legislativo do Estado, é esclarecedora devido ao seu baixo valor. Com as eleições de 2014, somente 45 mulheres compuseram a Câmara dos Representantes dentro de um total de 475 cadeiras, número distante da meta de 30% de presença do sexo feminino em cargos de grande responsabilidade fixada por Shinzo Abe. Importante citar que entre as ocupantes estavam as ex-ministras Yuko Obuchi e Midori Matsushima, que renunciaram à chefia de ministérios em razão de denúncias de corrupção.
Na eleição da câmara inferior de 2017, 209 mulheres concorreram, sendo 23 eleitas através do sistema constituinte e 24 por meio do sistema de representação proporcional. Dessa forma, tendo sido eleitos 465 membros, a porcentagem da presença do sexo feminino na câmara em questão é de 10,1%. “A maior taxa apresentada foi em 2009, com 11.25%” (HOSAKA, 2019, p. 22).
O Japão ocupa a 125° posição no ranking global de empoderamento político feminino segundo o relatório do Fórum Econômico Mundial, no qual a presença de mulheres em relação aos homens no parlamento japonês é ilustrada pela proporção de 0,11 enquanto a ocupação de posições ministeriais é de 0,19, ambas significativamente baixas.
Além da dificuldade de acesso ao cargo, as mulheres enfrentam outro obstáculo: as exigências comportamentais, exclusivamente dirigidas ao sexo feminino, sob a justificativa de respeitar as tradições japonesas. No ano passado, Yuka Ogata, eleita para a Assembleia de Kumamoto, precisou se retirar do Plenário por estar com uma pastilha na boca, o que, segundo a Assembleia, violava a dignidade da Câmara. Ela se recusou a se desculpar sob a alegação de se tratar de uma medicação necessária e, mesmo assim, foi impedida de retornar ao Plenário. Além das limitações quantitativas, há também a limitação funcional, pois essas mulheres enfrentam obstáculos ao exercício concreto de seus poderes e papéis.
A mudança de Imperador pode ser fundamental para fomentar discussões e reflexões sobre esses impedimentos que as mulheres enfrentam no âmbito político devido à figura da nova Imperatriz. Owada Masako, formada em Harvard, estudou em Oxford após ser selecionada pelo Ministério das Relações Exteriores e retornou ao Japão em 1990, onde adquiriu reconhecimento como diplomata júnior na Segunda Divisão Norte-Americana do Departamento de Assuntos Norte-Americanos. Apesar de ter inicialmente recusado por não querer desistir de sua carreira e perder sua liberdade, seu noivado com o, na época, príncipe Naruhito foi anunciado no início de 1993.
Com o nascimento da princesa Aiko em 2001, que não poderia suceder o pai, visto que a Lei Imperial não permite que mulheres ascendam ao trono, Masako teve que lidar com problemas de saúde devido à pressão que recebeu. Em 2002, ela permaneceu fora do alcance público e foi diagnosticada com distúrbio de adaptação em 2004, o que levou seu marido a pedir paciência e compreensão ao povo. Nesse mesmo ano, Junichiro Koizumi, então primeiro-ministro, “propôs uma revisão na lei para permitir a figura de uma imperatriz - o que, potencialmente, faria da princesa Aiko uma futura líder. Esses planos foram interrompidos após o nascimento do seu primo, príncipe Hisahito, em 2006” (BBC, 2019, online), visto que a urgência do assunto cessou. Com a abdicação de Akihito, inevitavelmente Masako passou a ter mais presença em público.
Quando se casou com Naruhito, ela era uma figura que poderia quebrar o molde das tradições imperiais e a centralização na figura masculina, aspectos inerentes à monarquia mais antiga do mundo. No entanto, ela foi impedida de viajar para o exterior e teve seus esforços direcionados aos deveres públicos em casa, o que, segundo discurso do, à época, príncipe herdeiro, deixou-a estressada e exausta por tentar se adaptar ao ambiente da Casa Imperial. A troca de uma carreira diplomática pelos deveres reais de Masako geraram debates sobre o papel da mulher diante das tradições imperiais conservadoras, retrato de uma sociedade voltada para o sexo masculino. O país detém a 110° posição no ranking mundial de igualdade de gênero do Fórum Econômico Mundial. Em 2017, conforme pesquisa do Ministério do Trabalho, somente 11,5% dos cargos gerenciais ou superiores em empresas com 10 ou mais funcionários eram ocupados por mulheres.
A diferença salarial em trabalhos iguais em razão do gênero, a falta de auxílio governamental à mulher para possibilitar a conciliação da vida profissional e doméstica devido à restrição de acesso às creches, os obstáculos ao exercício de cargos políticos por razões fundamentadas em padrões comportamentais impostos ao sexo feminino em função de tradições, a limitação de ocupação de posições políticas e, dentre outras situações, a pressão social pelo desenvolvimento do papel doméstico atribuído à mulher fazem da Imperatriz Masako o verdadeiro símbolo da sociedade japonesa como determina a Constituição, porém não se pode afirmar que o que é retratado é o almejado.
Surpreendentemente, Naruhito esteve presente de forma ativa na criação da filha, comportamento não acompanhado pela população masculina japonesa no geral, o que reforça o papel da mulher como cuidadora da família apesar do incentivo governamental à licença-paternidade através de uma lei que vigora no país desde 2010, dificultando sua inserção em diversas áreas, inclusive na política, e defendeu a esposa de acusações de que ela estaria negligenciando as responsabilidades de pertencer à Família Real.
Por mais que a realeza japonesa não tenha um papel político e seja proibida de fazer declarações com esse tipo de conteúdo, Akihito demonstrou durante seu Império que ações possuem um valor declaratório relevante e o mesmo se verifica e se espera do Imperador Naruhito. Não se sabe se ele irá pressionar o governo a alterar a legislação que impede a princesa Aiko de assumir o trono no futuro pelo simples fato de ser mulher e suas declarações sobre aprender com seus antecessores e dar continuidade ao trabalho desenvolvido pelo seu pai não indicam uma busca por mudanças efetivas quanto ao seu papel e por transformações sociais de forma explícita. O que se pode esperar é que seu comportamento em relação a sua filha e sua esposa, sua criação fora da Casa Imperial e sua orientação política e social liberais fomentem debates dentro de uma sociedade em que o papel da mulher é reduzido a construções conservadoras, o que é o primeiro passo para a ascensão feminina nos diversos âmbitos da sociedade japonesa, inclusive no jogo político, apesar de ainda muito distante de se concretizar.
¹Estudante do 4° ano de Direito pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (migueleloah@gmail.com).
REFERÊNCIAS
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BARGER, Brittani. Who is Empress Masako of Japan?. Royal Central, 14 abr. 2019. Disponível em: https://royalcentral.co.uk/asia/japan/who-is-crown-princess-masako-of-japan-111553/. Acesso em: 17 nov. 2019.
Quem é Naruhito, príncipe ‘acadêmico e família’ que assumirá o trono no Japão. BBC, 29 abr. 2019. Seção Internacional. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48099060. Acesso em: 15 nov. 2019.
Mudança de Papel em Uma Sociedade em Transformação. Embaixada do Japão no Brasil, Brasília. Seção Sociedade. Disponível em: https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/genero.html. Acesso em: 03 nov. 2019.
HOSAKA, Stefhanie Tsuge. A presença da mulher na diplomacia japonesa. 2019. Monografia de conclusão de curso (Graduação em Relações Internacionais) - Universidade Estadual Paulista, Franca.
MAKIGUSSA, Caroline Osiro. A mulher japonesa no mercado de trabalho no século 21. 2015. Monografia de conclusão de curso (Licenciatura em Língua e Literatura Japonesa) - Universidade de Brasília, Brasília.
MURAKAMI, Sakura; YOSHIDA, Reiji. Crown Princess Masako: a symbol of Japanese women's struggles in a male-domineted society. The Japan Times, 22 fev. 2019. Seção National. Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2019/02/22/national/history/crown-princess-masako-symbol-japanese-womens-struggles-male-dominated-society/#.XdHWxVdKjIU. Acesso em: 20 nov. 2019.
HIRAI, Fumio. A change of heart: the courtship of Princess Masako. Nippon.com, 08 mar. 2019. Seção Society. Disponível em: https://www.nippon.com/en/news/fnn20190212001/a-change-of-heart-the-courtship-of-princess-masako.html. Acesso em: 17 nov. 2019.
Mulheres representam apenas 9,5% do parlamento do Japão. Exame. Seção Mundo. Disponível em: https://exame.abril.com.br/mundo/mulheres-representam-apenas-9-5-do-parlamento-do-japao/. Acesso em: 16 nov. 2019.
RYALL, Julian. A luta das mulheres japonesas para ter voz na política. DW Brasil, 05 out. 2018. Seção Notícias. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/a-luta-das-mulheres-japonesas-para-ter-voz-na-pol%C3%ADtica/a-45772130. Acesso em: 29 nov. 2019.
The Global Gender Gap Report 2018. World Economic Forum, 2018. Disponível em: http://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2018.pdf. Acesso em: 17 nov. 2019.
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