Escrito por: Maria Cecilia Teixeira Miranda¹ e Giovanna Leme Castro²
Antes de adentrar ao recorte geográfico específico, é, sem dúvidas, importante redigir uma análise referente a dois tópicos historicamente conflituosos: trabalho e gênero. Em análise breve, pode-se destacar os primordiais trabalhos rurais e tribais envolvendo mulheres que participavam intensamente na produção da renda familiar, apesar do pouco espaço dessas nas páginas historiográficas. Embora o papel desse trabalho seja importante, há com a chegada do capitalismo um interessante enfoque na área industrial, ainda que tal atenção seja predominantemente dirigida ao gênero masculino. Mesmo com a industrialização, é evidente que as mulheres têm sua carreira profissional limitada em alguns setores, como o alimentício, o vestuário, o de serviços domésticos e de serviços sociais, em geral. Além da segregação e da jornada dupla, que consiste em conciliar trabalho formal e informal, há desvantagens quanto à questão de acesso aos recursos básicos como à educação, à terra e à infraestrutura. Esses fatores ressaltam desigualdades de gênero mesmo em países bem desenvolvidos.
Em “Além da Polêmica do Provedor”, artigo escrito por Chitra Joshi, há uma explicação sobre a dificuldade de identificar as possibilidades existentes acerca do trabalho feminino na Índia, o que acaba reforçando pressupostos masculinos. Isso colabora para o surgimento de uma dificuldade ainda maior no que tange a diferenciação entre o espaço doméstico com o espaço de trabalho. Nas próprias palavras da autora, “As divisões entre espaço doméstico/ espaço de trabalho, fora/dentro, informal/formal, que sempre foram tênues, parecem agora confundir-se” (JOSHI, p. 148).
Ainda dentro do cenário industrial, além das dificuldades de gênero, incluindo desigualdades salariais, falta de reconhecimento e confusões entre o público e o privado, o artigo ressalta a batalha a ser travada contra o “ideal de provedor” que permeia o estereótipo esperado a ser seguido pelos homens, o qual acaba produzindo uma estreita relação com a substituição da mão de obra barata feminina por mão de obra qualificada masculina no processo de industrialização ocidental.
O ideal de homem provedor cria um cenário doméstico reservado para as mulheres, além de acariciar o ego e a autoestima masculina e manter sua segurança referente a sua masculinidade, evitando qualquer tipo de transgressão feminina, que é estreitamente ligada ao ambiente de trabalho. Além disso, esse molde favorece o sistema capitalista a partir do surgimento de um ideal “salário masculino” e a formação da ideia de mulher do lar. Logo, percebe-se que em uma sociedade capitalista bem estruturada, há papéis de gênero a serem desenvolvidos e cumpridos, sendo estes responsáveis pela perpetuação de ideais de domesticidade e exclusão das mulheres das esferas políticas e públicas, que são essenciais para o sucesso desse sistema.
Há, por exemplo, a noção de um trabalho feminino denominado “housewifization”, que diz respeito a um trabalho público feminino invisibilizado, mal pago e limitado a uma forma de trabalho doméstico, ainda que seja um serviço essencial para as grandes indústrias. Na Índia, por exemplo, mulheres de Kanpur, ao Norte do país, enrolam bidis, embrulham balas, cortam tiras de borracha, produzem incensos e sandálias no ambiente doméstico, o que redefine o relacionamento dessas mulheres com o lar. Além disso, a partir dessa flexibilização, da fragmentação em pequenas unidades e da fraca legislação oferecida por esse sistema, há uma redução de gastos ao mínimo. Consequentemente, essa relação torna-se muito atrativa para o sistema capitalista.
Logicamente, isso não seria diferente na indústria têxtil, ainda mais se levarmos em consideração países subdesenvolvidos do sul global, como é o caso da Índia, grande responsável por uma parte considerável da produção têxtil e país discutido pelos integrantes do blog.
Na Índia, o trabalho é encarado de formas distintas pela sociedade a depender da classe social a que a mulher pertence. Nas famílias mais abastadas, o trabalho feminino é repreendido em favor da manutenção do status de domesticidade e reclusão. Entretanto, diante de situações de vulnerabilidade e pobreza, o trabalho indica ser um ato de necessidade, ainda que as mulheres recebam uma remuneração inferior à dos homens. Joshi, autora do artigo, indica que a partir dos anos 1980, a ocupação de mulheres indianas em empregos na indústria têxtil cresceu de forma importante.
Nesse contexto, com o crescimento das indústrias de malhas ocorre um igual crescimento da necessidade de mão de obra pautado em uma subcontratação e informalização. Nesse cenário, mulheres de inúmeras regiões e idades buscam por esses contratos casuais, os quais oferecem uma remuneração bastante inferior a um salário mínimo. Em contrapartida à alta mão de obra oferecida no setor da moda, as mulheres ainda são pouco reconhecidas no cenário externo à fábrica. De acordo com o documentário “The True Cost” (2014), aproximadamente 85% dos trabalhadores da indústria da moda sejam mulheres, quase 30 milhões de trabalhadoras, apenas 14% das 50 maiores marcas do ramo são lideradas por mulheres.
Uma pesquisa feita pelo Business of Fashion, em 2016, mostra que dos 371 designers por trás das 313 marcas que desfilam durante as quatro semanas de moda mais importantes do mundo (NYC, Londres, Milão e Paris), apenas 40,2% eram mulheres. Esses números ressaltam, mais uma vez, a já citada relação de desigualdade na indústria e no mercado da moda, ainda mais se levado em consideração que, de acordo com a pesquisadora Sophia Mind (2012), cerca de 55% das mulheres compram ao menos uma peça de roupa no mês, consolidando o que já era praticamente evidente: que o capitalismo é construído e se mantém a partir das desigualdades.
Ainda em relação à Índia, essa realidade se mantém de forma ainda mais profunda com a inserção das mulheres em empregos com características de subcontratação, tendo seus direitos trabalhistas praticamente ignorados e seus salários incondizentes com um valor justo e digno: segundo o documentário “The True Cost” (2014), essas trabalhadoras da indústria têxtil recebem em média apenas 3 dólares por dia, enquanto o setor movimenta 3 trilhões de dólares anualmente. Além disso, sabe-se que 20% da produção indiana é ligada ao setor do vestuário, o que gera cerca de 35 milhões de trabalhadores, que embora tenham conquistado melhorias, ainda trabalham semanalmente de 10 a 28 horas adicionais na jornada de trabalho. Logo, é muito importante que as mulheres adquiram sua independência dentro de um mundo patriarcal e que as oprime, porém, é imprescindível a reflexão acerca das condições em que isso ocorre em um mundo capitalista. O questionamento que deve existir é sobre a consequência que essa inserção no mercado de trabalho gera: emancipação ou exploração feminina?
No mundo capitalista, um dos fatores que determina a escolha do local de produção é o preço da mão de obra. Bangladesh é o segundo maior exportador de roupas no mundo, e segundo Sheng Lu (2015), o valor da hora de trabalho paga ao trabalhador corresponde a $0,62. Esse valor irrisório escancara a exploração sob a qual a mão de obra feminina é submetida na indústria têxtil, além das condições insalubres e das longas jornadas de trabalho que elas enfrentam. Sendo assim, é necessária a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, porém, dentro de regularizações e condições dignas.
Dado esses fatos, também faz-se necessária a reflexão sobre o mundo globalizado em que a sociedade está inserida. O processo de globalização associado com o capitalismo produz como consequência profundas diferenças sociais e econômicas no momento da produção têxtil. A busca incessante pelo lucro é realizada às custas da exploração da mão de obra, sobretudo da feminina, em países em desenvolvimento como a Índia. Prostrar-se e estar atento a esses problemas é uma questão de direitos humanos e de questionamento sobre a lógica capitalista. Vidas se tornaram uma mercadoria, e uma mercadoria barata aos olhos dos que detêm os meios de produção.
¹Estudante do 2° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (mct.miranda@unesp.br)
²Estudante do 2° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (gl.castro@unesp.br)
Referências Bibliográficas
GODOI, Izabella de. A dimensão de gênero nas cadeias globais de valor (CGV) da indústria fast fashion: um estudo de caso sobre a Índia. 2018. 30 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Relações Internacionais) – Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018.
JOSHI, Chitra. Além da polêmica do provedor: mulheres, trabalho e história do trabalho. v. 1 n. 2 (2009): Perspectivas de gênero nos mundos do trabalho, 2009-11-08, Florianópolis.
LONGHI, Tatiana Castro; SANTOS, Flávio Anthero Nunes Vianna dos. Uma análise crítica das condições de trabalho na indústria têxtil desde a industrialização do setor até os dias atuais. v. 5 n. 10 (2016): HFD, 2016-12-01
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