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Contexto histórico da personagem chinesa Mulan

Atualizado: 8 de dez. de 2020


© Imagem: The Trustees of the British Museum.


Escrito por: Felipe Augusto Antunes de Mesquita Luna¹, Lucas Hideo Sagawa², Luis Antonio Cardoso³ e Luísa Locatelli Santos⁴.


A história de Mulan é, talvez, uma das mais famosas narrativas que se passam no Oriente de que se tem conhecimento no Ocidente. Muito dessa popularidade se deve à existência de diversas produções sobre esse poema, inclusive ao longo da história, e, mais recentemente, às mídias de longa-metragem produzidas pela Disney em formato de desenho ou com atores reais. Porém, há um grande debate acerca da origem e real existência da figura de Mulan. Neste breve texto iremos explorar algumas das possibilidades acerca do poema que originou a história e o contexto em que fora produzido, isto é, o momento histórico em que se passa o poema.


Além disso, não podemos deixar de mencionar, ao fazer essa análise, que o momento histórico no qual o poema foi escrito não é o mesmo momento no qual se passa a história de Mulan, e, por essa diferença, também daremos atenção à Dinastia Tang, conhecida por ser a Dinastia que escreveu a primeira versão do poema, por ter valorizado uma corrente filosófica entendida como Confucionismo, que também foi adotada como prática e regra pelos governantes Tang, e por ter consolidado a burocracia chinesa até meados do século XX. Por fim, exploraremos os possíveis motivos que levaram a Dinastia Tang a de fato escrever o poema, até então entendido como uma tradição oral, que exploraremos mais à frente.


O primeiro ponto a ser salientado no estudo dessa história em formato de poema são as diferentes versões feitas durante a história. Segundo Zhuogi Wang, da faculdade de Hamilton, o poema é uma acumulação de diversas formas de representar Mulan, como uma possível guerreira nômade, um modelo do confucionismo de lealdade ou as representações modernas que vão do clássico animado à versão em ato real de 2020. Esse conto foi provavelmente derivado do folclore oral de povos nômades, sendo que sua primeira versão seria a do monge Zhijiang no registro musical de velhas e novas do século VI.


No entanto, a versão de texto mais extensa seria a antologia de Guo Maoqian do século XII. Visto esse contexto, que trata da região do noroeste chinês, e que essas versões tratam de séculos após a queda da dinastia sei, o autor afirma que é possível que intelectuais confucionistas interpretaram o poema por meio de seus valores.


Deste modo, as diferentes versões têm leituras conflitantes sobre quem seria Mulan. Para Feng Lan, da universidade de Oregon, a maioria dos acadêmicos acredita que o contexto do poema se passa durante o século V ou VI, em que o Imperador Taiwu derrotou o exército Rouran em 429 AD. Esse império foi fundado pela tribo Xinbei, um povo não chinês de nômades que tiveram o jugo do nordeste chinês entre 386 a 534 AD.


Outro fator que sustenta essa argumentação é o de que o império resistiu aos valores confucionistas e só começou a incorporá-los para fortalecer seu império. Novamente, o autor chama à atenção que é impossível determinar com precisão a etnia de Mulan, embora seus valores, de honra, habilidades bélicas e versatilidade militar, assimilam-se mais aos atributos dados a outros poemas sobre as mulheres dessa região, diferente das mulheres graciosas do confucionismo. É possível então afirmar que esse tipo de personagem só poderia ter surgido nesse contexto de guerra e conflito, em que não seria uma celebração do confucionismo, mas sim da ausência desses valores. O valor da dedicação de uma jovem à família poderia ser adotado pelo confucionismo.


Portanto, não é de se surpreender que esses elementos começaram a aparecer nesse conto durante a Dinastia Tang (618-907 AD), após quatro séculos, em que a China estava dividida e o confucionismo em decadência. Há o início de uma ressurgência dessa filosofia em vários aspectos da vida social. Valores como “Xiao’’ (fidelidade filial), em que a família é a unidade fundamental na qual todas as estruturas sociais são fundamentadas, além da obediência das crianças aos pais e o dever de preservar a honra e a família, a virtude de “Zhong” (lealdade à monarquia), em que a política confuciana vê o Estado como uma grande família, na qual a relação do monarca e súdito seria análoga à de pai e filho, e a terceira seria a castidade da mulher, que somada aos demais atributos, tornou-se presente em várias recontagens do poema.


Durante as várias dinastias que governaram o norte, sendo a mais notável o estado de Wei do Norte, a mistura de tradições e conhecimentos das elites nômades com o aparato burocrático Han fez com que a dinâmica entre os povos nômades e os estados sedentários mudasse. Durante o período dos dezesseis estados a fonte de renda mais comum a esses estados sedentários com elites nômades era o saque dos estados vizinhos. Obviamente, essa não era uma fonte de renda sustentável a longo prazo e isso criou um ciclo de estados liderados por povos não Han que caíam um após o outro e eram substituídos por novos povos nômades ou conquistados por seus vizinhos.


Os estados que puderam criar uma base de poder sustentada no sistema chinês de coleta de impostos acabaram por prevalecer a longo prazo, mas estavam sempre vulneráveis a ataques dos povos nômades do norte. Estes povos, normalmente dispersos, reuniam-se no outono, logo antes do que seria a colheita, e saqueavam as bordas daqueles reinos.


A elite anteriormente nômade desses reinos do norte, em específico o Wei do Norte, que seria o estado a prevalecer entre os do norte, sabia muito bem disso, então adaptaram suas táticas de acordo. O estado Wei do Norte, com um melhor entendimento do uso da cavalaria e de arqueiros montados, além do entendimento da política das cortes nômades, tornou-se o primeiro na história da China a repelir o ataque de uma confederação tribal, a tribo Rouran, com seu conhecimento. Passaram a travar guerras preventivas em cada geração para manter o poder dos povos nômades em cheque, mantendo alianças pelo casamento e encorajando rivalidades locais para que eles não se unissem.


O estado de Wei do Norte posteriormente colapsou e foi conquistado pela Dinastia Sui do Sul, que reunificou e estabeleceu um novo império. Outra marca que o período dos

dezesseis estados e os povos nômades, deixaram foi a propagação de outras formas de religião fora da tradição confucionista, que pregava o culto aos ancestrais e ao imperador, tais como o budismo e o taoísmo principalmente, mas também o nestorianismo e o islamismo.


Essas novas religiões traziam consigo novas demandas culturais e novas formas de se organizar uma sociedade. Não se sabe ao certo o grau de aderência que essas novas religiões tiveram do povo chinês, mas é nessa época que vemos nos santuários das famílias uma tentativa de se garantir um pós-vida feliz de acordo com a tradição budista, com uma série de estátuas de Buda e templos se espalhando pela cadeia de montanhas ao norte. Essas introduções também mudaram as ideias sobre o lugar da mulher na família e até mesmo as ideias sobre o que era um reino, todas posteriormente harmonizadas com o confucionismo mais ortodoxo. Buda e Tao até mesmo se tornaram parte da corte do Imperador de Jade, como pode ser visto no clássico “Jornada ao Oeste”.


A Dinastia Sui reinou por apenas quatro décadas: o seu último imperador foi assassinado pelos seus ministros, entre os motivos citados para isso estão as guerras de conquista da Coreia que fracassaram miseravelmente, as invasões turcas e os excessivos gastos com luxos do imperador. Com a morte dele, o duque de Tang, chamado Li Yuan, rebelou-se juntamente com seu filho e sua filha, ambos comandantes de suas próprias tropas. A família Li fazia parte da casta militar do império e, portanto, tinha laços sanguíneos com os povos nômades, dos quais eles se utilizaram para angariar soldados para a sua causa e tiveram sucesso em destronar a Dinastia Sui e fundar a Dinastia Tang.


Essa nova Dinastia Tang era, em todos os aspectos, cerimoniais, religiosos ou culturais, uma Dinastia Han, mas como a família que a fundou foi a família Li, conhecida por ser parte da aristocracia militar do império e por normalmente se casar com os povos nômades, conservou também o conhecimento de estados anteriores, como os de Wei do Norte, sobre a forma como se dava a política nas estepes e utilizou esse conhecimento para subjugar os povos tártaros do norte e da Ásia Central.


¹Estudante do 3° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (felipelunamo@hotmail.com).


²Estudante do 4° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (lucashideosagawa@gmail).


³Estudante do 3° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (la.cardoso@unesp.br).


⁴Estudante do 5° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (locatellisluisa@gmail.com).


REFERÊNCIAS


LEWIS, E. M. China’s cosmopolitan Empire. The Tang dynasty. Cambridge. Belknap Press.


___________. The northern and southern dynasties. Cambridge. Belknap Press, 2009.


LAN, Feng. The Female Individual and the Empire: A Historicist Approach to Mulan and Kingston’s Woman Warrior. Comparative Literature, Duke University Press on behalf of the University of Oregon, v. 55, n. 3, p. 229-245, 2003.


WANG, Zhuoyi. Cultural “Authenticity” as Conflict-Ridden Hypotext: Mulan (1998), Mulan joins (1939), and a Millenium Long Intertextual Metamorphosis (2020). Hamilton College, Clinton, 2020.

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