Escrito por: Bruna Carolina da Silva Souto¹ e Lara Rael Santinelo².
Mulan, um folclore da China, foi interpretado e reinterpretado diversas vezes ao longo da história. Seja em teatros, óperas ou filmes, a forma das adaptações procura condizer com a conjuntura histórica e política de sua época, assim como responder às necessidades desse contexto. As versões da Disney, porém, apresentam um diferencial: elas não são originariamente chinesas, mas estadunidenses, o que abre espaço para a ressignificação da lenda segundo conceitos ocidentais. O filme mais recente, lançado em 2020, ostentou exatamente essa questão: ele não contou com nenhum representante chinês — ou sequer asiático — em posições relevantes na equipe técnica. Embora o elenco seja majoritariamente chinês, a direção, a produção e o roteiro tiveram apenas responsáveis de origem ocidental. Isso talvez explique por que o filme chegou a angariar tantas críticas dentre os chineses, algumas delas apontando justamente um distanciamento da história original, outras enfocando os deslizes orientalistas.
A audiência internacional também expressou diversos descontentamentos, sobretudo por polêmicas políticas que se deram nos bastidores: em primeiro lugar, a atriz que interpreta Mulan, Liu Yifei, tornou-se alvo de críticas por postar uma mensagem a favor da polícia honconguesa e de sua repressão violenta aos protestos de Hong Kong. Mais tarde, revelou-se também que uma parte das filmagens se deu em Xinjiang, província acusada de deter em campos de detenção a minoria étnica Uyghur, assim como a outros muçulmanos e minorias de ascendência túrquica. Enquanto isso, os créditos do longa-metragem agradecem ao Departamento de Propaganda do governo de Xinjiang, à Secretaria de Segurança Pública e à Secretaria de Turismo de Turpan (cidade em Xinjiang), escancarando a cumplicidade da Disney com departamentos relacionados aos campos. Os escândalos desataram nas redes sociais clamores por boicotes ao live action.
O que levou a adaptação de um clássico mundialmente querido a esse ponto? Para muitos analistas, o novo filme de Mulan tinha clara intenção de penetrar o mercado chinês, exemplificado por adaptações no roteiro feitas para agradar o público chinês mais tradicional, como o corte do dragão Mushu, bastante popular na animação, mas pouco condizente com a visão chinesa do que um dragão representa. O mercado consumidor chinês tem se tornado cada vez mais interessante, visto se tratar do segundo maior mercado cinematográfico do mundo hoje. Ademais, enquanto o número de cinemas dos EUA vem se reduzindo, na China a situação é oposta. Em meio à pandemia, isso se aprofundou: quando do lançamento do filme, em setembro de 2020, a maior parte dos cinemas dos EUA permaneciam fechados graças às medidas de isolamento, enquanto a China já conseguira reabri-los.
Via de regra, os filmes estrangeiros precisam se adequar à censura governamental para que possam estrear na China, contudo são notáveis os lucros que o país pode representar para a Disney. Além disso, o filme apresenta uma dupla oportunidade de soft power, para os EUA que são os responsáveis pelo filme e para a China pela sua temática. O conceito de soft power, elaborado por Joseph Nye, refere-se à capacidade que um Estado tem de alcançar seus objetivos usando apenas a atração, sem recorrer à coerção; esse poder geralmente se manifesta através de recursos culturais, como a música ou o audiovisual. Se os EUA já dominam a arte de exercer soft power, a China encontra dificuldades nessa área e está cada vez mais preocupada em exportar sua cultura e conseguir pintar uma imagem positiva do país, assim como aumentar o consumo de suas produções de entretenimento. Um clássico da Disney mundialmente famoso e querido parece um lugar promissor para começar.
Logo, “Mulan” (2020) teria o desafio de apelar tanto à audiência chinesa quanto à ocidental. A questão étnica-nacional parece conveniente para tanto, ou, pelo menos, para garantir a aceitação dos censores: no filme, a personagem Mulan é da etnia Han — de longe o maior grupo étnico do país hoje — e tem como papel derrotar os Rouran, uma tribo invasora; eles são retratados como selvagens e bárbaros, irremediavelmente os vilões. Na realidade, tanto o povo a quem provavelmente pertencia Mulan quanto os povos Rouran eram de diferentes ramos do mesmo grupo étnico: os mongóis. Entretanto, o live action busca retratar uma única China, monolítica cultural e etnicamente através de seus milênios de história e que se defende contra ameaças externas. Embora não tenha origem direta em uma política cultural do Estado Chinês, isso passa a visão de um país unificado e forte, pronto para defender seus interesses frente ao mundo, e também se encaixa na compreensão limitada da maioria da audiência ocidental.
Por outro lado, essa visão também é de interesse interno: autoridades e conselheiros chineses também recomendaram à Disney evitar especificidades históricas (ZHANG, 2020, on-line). Isso não é em vão, tampouco o é o fato de que a supracitada releitura monolítica da história chinesa é comum em diversos filmes produzidos pelo próprio país. Para a maioria dos estadistas e intelectuais chineses (Han), a promoção de uma visão de unidade nacional e de um povo único com interesses compartilhados é essencial para a estabilidade da nação, de modo a impedir que ela seja dividida por conflitos étnicos ou similares.
Isso é um dos motivos pelos quais muitas minorias não são reconhecidas pelo Estado Chinês, por exemplo, e muitos se opõem ao reconhecimento de outras ou à expansão de políticas públicas voltadas às minorias já existentes com a justificativa de temer causar fissuras na união nacional. Ao mesmo tempo, a percepção das minorias como “bárbaras” vai de encontro à mentalidade de muitos dos Han, o que ecoa igualmente em outras produções audiovisuais. Dentro do panorama chinês, a cultura Han seria justamente a face da civilização e as minorias devem se adequar a ela, ao menos é isso que muitas políticas públicas e obras de entretenimento parecem indicar. É notório, por exemplo, que algum tempo depois do encerramento das gravações também viriam à luz novas medidas de repressão do idioma dos mongóis que habitam no território chinês.
Ainda nesse sentido, a própria filmagem em Xinjiang adquire caráter estratégico: é uma maneira de afirmar que a região sempre pertenceu à China, que é parte da história única dos chineses; similarmente, reforça a mensagem de que povos considerados “de fora” podem tentar desestabilizar a nação, mas não devem conseguir. Isso é uma ferramenta poderosa para influenciar a opinião pública em casos de movimentos separatistas ou outras reivindicações de minorias étnicas. Mulan ainda tem o poder de vender esse imaginário para uma audiência global, ao contrário de tantas outras produções. Nos últimos anos, com a crescente retirada dos direitos dessas minorias, tal ferramenta se torna cada vez mais importante.
Por outro lado, a questão étnico-nacional pode acabar indo contra os interesses de fomento do soft power, uma vez que a atração que a cultura é capaz de produzir acaba sendo minada por condutas que não condizem com a imagem que se quer passar, como ocorreu com as supramencionadas polêmicas, que direta ou indiretamente diminuem a credibilidade do filme.
Enquanto isso, a recepção das audiências chinesas parece esbarrar nas adaptações feitas para tornarem o live action palatável ao Ocidente. A aprovação dos censores ou das instituições políticas nacionais não significa a aprovação de sua população: se os primeiros estão confortáveis com certas incoerências históricas e culturais, elas são difíceis de ignorar para a última. O crítico de cinema Shi Wenxue, por exemplo, aponta como o filme mistura arquitetura e moda de períodos e regiões distintas, além de incluir gestos ninjas tipicamente japoneses em suas artes marciais.
Desse modo, o filme consegue parecer chinês para o Ocidente (ZHANG, 2019, on-line) e supre suas expectativas de assistir a algo “exótico”, que se passe no “Oriente”; é aqui que jaz o orientalismo de Mulan. Em redes sociais, muitos da audiência apontaram os mesmos detalhes que Shi Wenxue e ecoaram suas críticas. No fim, com avaliações pouco otimistas e um box office menor do que o esperado, “Mulan” (2020) parece falhar em agradar qualquer um de seus públicos-alvo e se vê envolvido em polêmicas que decerto não eram do desejo da Disney.
¹Estudante do 4° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (brucssouto@gmail.com).
²Estudante do 3° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (lararaels@gmail.com).
REFERÊNCIAS
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