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O Estado soberano e o Tibete


© Imagem: East-West Center, 2004.


Escrito por: Bianca Mateus Rosa¹.


Estamos habituados à existência dos Estados nacionais e aos conflitos, disputas e acordos entre os mesmos, os quais são temas recorrentes nos noticiários, filmes e livros, além de termos nascido sob a égide da nacionalidade brasileira. Os Estados constituem o sistema social internacional, mas não são seus únicos integrantes, também existem as organizações internacionais cujo maior expoente é a Organização das Nações Unidas (ONU). Entretanto, são os Estados que detêm a autoridade legítima no sistema internacional, isto é, são soberanos. A soberania estatal é um conceito fundamental, pois é um dos pilares do sistema internacional. Todavia, o sistema de Estados nacionais não funciona perfeitamente e possui muitas idiossincrasias, dentre elas as tensões entre Tibete e China.


Antes de compreendermos o que cada parte reivindica e as contradições que abarcam essa questão, é importante entender que o nome Tibete pode se referir a conformações territoriais diferentes como o Tibete Político, correspondente à Região Autônoma do Tibete, uma região autônoma da China, localizada no sudoeste do país. Mas, também há o Tibete etnográfico, cujo território era formado pelas províncias de Amdo e Kham. Além dessas duas, há o Tibete Histórico², que seria a junção do Tibete Político e Etnográfico, ou seja, refere-se a uma extensão territorial muito maior do que a definida pelos limites da Região Autônoma do Tibete, determinada pela República Popular da China.


As compreensões diferentes sobre o que seria o Tibete é muito importante para entender essa disputa, pois o governo exilado do Tibete tinha como objetivo a reunificação do Tibete Político e Etnográfico, afirmando que esses dois territórios foram historicamente independentes da China, o que configura o Tibete Histórico, que depois da Revolução Comunista foi dividido em várias províncias, como Qinghai, Gansu, Sichuan e Yunnan, além da região autônoma estabelecida em 1965. Sendo assim, o governo exilado do Tibete afirma que seu território foi invadido pelos chineses em 1949, quando adentraram a região de Amdo e Kham. Todavia, há indícios de que apenas o Tibete Político esteve sob jurisdição do Dalai Lama, o qual foi ocupado pelas forças chinesas somente em 1950.


Sendo assim, podemos entender que há uma grande dificuldade de determinar a autoridade exercida nessa região, principalmente em Amdo e Kham, visto que se trata de um período de tempo muito extenso a ser analisado, que abarca muitas disputas territoriais, e de zonas de influência, o que inclui a fragmentação do território tibetano no século VIII, a fragmentação do império chinês durante a dinastia Tang em 950 d.C., o domínio mongol na região e os interesses das potências do século XX.


Segundo a China, nenhum país reconheceu o Tibete como um Estado e por mais de 700 anos esteve sob a autoridade chinesa. Assim, as reivindicações de independência seriam fruto dos interesses imperialistas na região, como da Grã-Bretanha no início do século XX, aproveitando a instabilidade gerada na China com o fim da dinastia Qing em 1911. Um dos exemplos seria o acordo firmado em 1907 entre Grã-Bretanha e Rússia, através do qual decidiram que todos os assuntos referentes ao Tibete seriam negociados com a China, entretanto a autoridade chinesa no Tibete foi caracterizada sob o título de “suserania”, o que, segundo a China, não passou de uma tentativa de descaracterizar sua soberania na região. Assim, a independência de 1912, reconhecida pelo governo exilado do Tibete, não teria passado de uma tentativa das forças imperialistas para fragmentar seu território.


Com a proclamação da República da China, o governo chinês reivindicou todos os territórios que foram incorporados pela dinastia Qing (1644-1911), os quais faziam parte da “pátria-mãe”. Entretanto, o 13º Dalai Lama, que até então vivia na Índia, organizou uma força militar e expulsou todos os representantes da China do Tibete em 1912, retornando e afirmando-se como governante, negando que o Tibete fosse parte do território chinês. Assim, para o governo exilado do Tibete, esse período teria marcado a independência, visto que por mais de trinta anos o Dalai Lama teria governando o país sem interferência da China e sem representantes chineses em seu território. Contudo, esse governo se resignou a expulsar os chineses, mas não desenvolveu uma política externa com vista ao reconhecimento de outros Estados. Dessa forma, quando em 1949 ocorreu a Revolução Comunista, o Tibete se encontrava isolado, sem o reconhecimento de sua independência pela comunidade internacional.


O Acordo dos Dezessete Pontos, assinado em 1951, marca a incorporação do Tibete pela China. Tratando-se de um documento elaborado segundo a legalidade precedente da política moderna, foi assinado por representantes do Tibete em Pequim e constituiu-se como prova de um acordo político que dava à China autoridade e reconhecia o Tibete como parte de sua integridade territorial. A cláusula oito determinou a incorporação do exército tibetano pela China e a décima quarta estabeleceu que todas as questões internacionais ficariam a cargo de Pequim. Entretanto, segundo o 14º Dalai Lama, esse acordo foi assinado sob intensa ameaça chinesa de um novo ataque militar à Lhasa.


Além disso, a Corte Internacional de Juristas submeteu no ano de 1959 uma conclusão à ONU, cujo resultado foi a consideração da independência de 1912 como um evento legítimo e verdadeiro. O relatório submetido continha um estudo sobre a religião e estrutura sociopolítica do Tibete, o que também tem sido um dos argumentos a favor da configuração do Tibete como uma identidade cultural e política distinta da China. Entretanto, a soberania chinesa prevaleceu e com isso a incontestabilidade dessa condição é um fator que ajuda a China. Mas, há muitas contradições ligadas à constituição dos Estados nacionais e seu princípio basilar, a soberania.


Inicialmente, esse conceito foi sistematizado por Jean Bodin e responde às mudanças sociais e econômicas que ocorreram com o fim da Idade Média. O Estado moderno anula a ordem transcendental que antes legitimava o poder e institui uma ordem jurídica secular que pode centralizar o poder, mas ao mesmo tempo instituiu leis que impedem seu exercício arbitrário. Além disso, o Estado é capaz de reunir diferentes grupos sociais, dando “coesão”, abrindo a possibilidade da coexistência “pacífica” em determinado território, organizando interesses e impedindo a fragmentação do poder. Sendo assim, estabelece parâmetros para a relação entre esses diferentes grupos que compõem a sociedade.


Todavia, o Estado não se torna uma instituição tão pacífica como esperado, mas muitas disputas ocorrem em seu interior e, quase sempre, os grupos que detêm mais recursos conseguem sobrepor seus interesses. Com isso, uma série de exclusões passam a existir, ou seja, a harmonia e unidade se constituem como desigualdade e disputa. Além disso, esse Estado também emerge sobre a distinção entre o doméstico e o externo, isto é, o nacional versus o estrangeiro. Essa separação, grande parte das vezes, representa a principal ameaça à integridade do Estado, o que é visível no argumento chinês que “denuncia” as forças imperialistas que atuaram a fim de fragmentar seu território.


A definição mais recorrente do Estado soberano é a de Max Weber: o Estado reivindica a autoridade legítima dentro de um território delimitado e com isso possui o monopólio legítimo da força. Para essa perspectiva, a soberania é incontestável. Entretanto, é importante que analisemos a questão, mas não sob essa visão inflexível da incontestabilidade, pois a soberania está imersa nas relações sociais e em contextos de intensa disputa política, que congregam, inclusive, diferenças culturais. Principalmente a partir da década de 1980, chegam às Relações Internacionais perspectivas que contestam a universalização de conceitos fundamentais, como a soberania estatal, compreendendo a importância das relações sociais.


Assim, muito longe de constituir-se como um conceito neutro e universal, é resultado das ações humanas, que são parciais e marcadas pelo espaço e tempo, e, por isso, é incompleto para analisar e conformar sistemas culturais distintos, o que engloba práticas econômicas, políticas e espirituais. Portanto, pode ser instrumentalizado e utilizado segundo interesses particulares. Por exemplo, no âmbito externo o critério essencial para o Estado é o reconhecimento deste enquanto soberano por outros Estados soberanos. No entanto, esse reconhecimento possui critérios, um tanto quanto subjetivos, baseados em práticas culturais específicas, na economia política internacional e emaranhados no grande mar dos interesses projetados pelos Estados no sistema internacional. Dessa forma, alguns países podem reconhecer a independência de um Estado, enquanto a de outro não, mesmo que tenha uma população e uma identidade política distinta. Por isso, a soberania não é inerente aos Estados, mas fruto do processo social de reconhecimento entre ele e outros.


Outro fator fundamental é a capacidade do Estado-nação parecer atemporal, uma organização política natural, que negligencia as rupturas históricas, presa em uma concepção espaço-temporal determinada, o que restringe as possibilidades para a organizações políticas distintas. “[...] as explicações modernas da história e da temporalidade têm sido guiadas por tentativas de capturar o momento efêmero dentro de uma ordem espacial: dentro [...] das reivindicações soberanas dos Estados territoriais” (WALKER, 2013, p. 21). Exemplo disso é a afirmação do governo chinês de ter exercido por mais de 700 anos soberania sobre o Tibete.


Como podemos caracterizar as relações políticas estabelecidas antes da criação do Estado moderno a partir de seus conceitos fundamentais? Além disso, as reivindicações nacionalistas da República da China se baseiam em territórios conquistados durante a dinastia Qing, que abarcam uma diversidade cultural imensa. Essa questão exemplifica como as identidades nacionais - fazendo coro a Benedict Anderson (2013) - são imaginadas, construídas e modeladas para se conformarem aos moldes dos Estados nacionais.


Além disso, o budismo parece ser algo muito mais importante para os líderes tibetanos do que o domínio militar e político, como nas relações desenvolvidas entre Kublai Khan, líder mongol a partir de 1260, e Phagpa, vice-rei do Tibete sob o comando mongol. Este se tornou Tutor Imperial e sentava-se em um trono acima de Kublai durante as instruções religiosas, o que exemplifica a importância e respeito que os lamas detinham.


Além disso, antes em 1247, quando os mongóis conquistaram o Tibete, a prioridade dada ao budismo também se fez evidente no momento em que Sakya Pandita, líder da seita budista tibetana Sakya, aceita o título de vice-rei sem maiores contestações, sob o acordo com os mongóis de que estes colaborariam para a disseminação do budismo além do Tibete e que ajudariam os tibetanos com as questões temporais, ou seja, o governo do Tibete, enquanto os lamas forneceriam instruções religiosas aos líderes mongóis. Quem, nessa situação, era a maior autoridade? Talvez, para os líderes tibetanos fossem os lamas, já que a sabedoria espiritual e a autoridade religiosa parecem ser muito mais significativas para o ordenamento da sociedade tibetana do que a autoridade fundada a partir da política moderna.


Dessa forma, entender se historicamente o Tibete sempre foi ou não parte da China requer uma análise atenta de documentos e narrativas. Mas a questão que nos debruçamos nesse texto é a dificuldade de abordar esse problema sob os moldes do Estado soberano, visto que essa organização política e territorial tem suas bases delimitadas na Europa, fruto de processos inerentes a essa civilização e que, através da colonização, espalhou-se para outras regiões que possuíam práticas de organização política e territorial distintas, devido a suas particularidades culturais. Por isso, a conformação da disputa entre Tibete e China dentro da soberania estatal nos leva a uma questão muito complexa.


¹Estudante do 4° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (bianca.mateus.rosa@outlook.com).


²O Tibete Histórico compreende as províncias de Amdo, Kham e U-Tsang. Atualmente, a primeira corresponde às províncias chinesas de Qinghai, Gansu e Sichuan, a segunda compõe as províncias de Sichuan, Yunnan e Qinghai e U-Tsang se refere a parte da Região Autônoma do Tibet.


REFERÊNCIAS


ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas : reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhias das Letras, 2013.


BIERSTEKER, Thomas J. (Ed.); WEBER, Cynthia (Ed.). State sovereignty as a social

construct. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.


GARCÍA, Elvira García. Tibet made in China [Projeto de pesquisa]. Barcelona: Faculdade de Ciências da Comunicação, Universidade Autônoma de Barcelona, 2015.


GOLDSTEIN, Melvyn C. The Snow Lion and the Dragon: China, Tibet, and

the Dalai Lama. Berkeley: University of California Press, 1997.


LAMA, Dalai. Minha terra e meu povo: A tragédia do Tibete. São Paulo: Editora

Melhoramentos, 1963.


SANTOS, Wagner M. Soberania: um conceito em busca de definição. Revista Conjuntura

Austral. Porto Alegre, v. 7, n. 33-34, p. 33-44, dez. 2015/mar. 2016.


SPERLING, Elliot. The Tibet-China Conflict: History and Polemics. Washington:

East-West Center Washington, 2004.


WALKER, R. B. J. As Relações Internacionais como teoria política. In: Inside/Outside:

Relações Internacionais como teoria política. Rio de Janeiro: PUC-Rrio/Apicuri,

2013.


Tell you a true Tibet: Origins of So-Called “Tibetan Independence”. The National People’s

Congress of the People’s Republic of China. 18 mar. 2009. Disponível em: http://www.npc.gov.cn/zgrdw//englishnpc/Special_NPC_Delegation/2009-03/18/content_149

3948.htm. Acesso em: 02 jan. 2020.

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