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Escrito por: Helena Lucchesi¹ e Felipe Augusto Antunes de Mesquita Luna²
O fenômeno da terceirização, apesar de cada vez mais se expandir para novas áreas de trabalho e, principalmente, em países considerados como subdesenvolvidos, não se inicia hoje. E, a fim de compreender melhor os motivos das empresas passarem a adotar esse modelo terceirizado de organização, voltaremos algumas décadas, quando se deu o início desta nova tendência, os fatores levados em consideração na hora de implementá-la, assim como suas vantagens e desvantagens.
Começa a ganhar destaque a partir dos anos 80 e 90, derivado do termo em inglês "outsourcing", o movimento de empresas com sedes em países desenvolvidos buscando realizar a parte de fabricação da produção em países de terceiro mundo. Devido a uma mão de obra mais barata e expressiva, do que em relação às condições trabalhistas dos seus locais de origem, as empresas têm os custos de produção barateados, provocando, com isso, o aumento do lucro, mas à custa de uma exploração humana e negação de direitos básicos trabalhistas. Podemos dizer que a existência de leis trabalhistas, sejam de proteção ou regulação, desempenham um papel fundamental para diferir os países que buscam realizar a terceirização daqueles vistos como atrativos de implementá-la.
A exemplo, a partir de 1938, inicia-se nos Estados Unidos (EUA) a regulamentação do trabalho através da aprovação da FLSA (The Fair Labor Standards Act), que seria o equivalente a CLT brasileira. Por meio do ato foram estipuladas medidas, como o salário mínimo, pagamento igualitário para todos exercendo uma mesma função, período de horas de trabalho e a limitação do trabalho infantil. Essa foi a primeira de uma série de leis aprovadas em prol do trabalhador. Na Europa Ocidental, não foi diferente, com alguns países antes e outros depois dos EUA. De todo modo, no decorrer do século XX, houve uma tendência no primeiro mundo de conquista de direitos pelos trabalhadores, devido a um intenso movimento de insatisfação por parte da sociedade civil, provocado pela exploração dentro dos ambientes de trabalho, em especial nas fábricas. De certa forma, as normas trabalhistas apresentam regulamentações similares para patrões e empregados dentro das nações desenvolvidas, variando de acordo com o grau de restrição. No mesmo período, enquanto estes países se encontravam em um momento pós-industrialização, focando em melhorias do sistema e na questão humanitária, aqueles em desenvolvimento concentravam seus esforços em passar por uma industrialização e diminuir seus laços de dependência com os países centrais.
O "atraso" das condições de trabalho em países subdesenvolvidos foi causado por diversos fatores que marcaram suas trajetórias nacionais como a colonização, dependência e/ou imperialismo, e aproveitado pelas mesmas nações responsáveis, em um passado não tão distante, em subjugá-los de forma direta. Por meio da utilização da mão de obra barata e as irrisórias leis trabalhistas, países de primeiro mundo, além de aumentar seus lucros e o superávit da balança comercial, encontraram uma nova forma de manter o controle sobre as nações, que um dia foram suas colônias, sem serem vistos com maus olhos diante da comunidade internacional. O atraso fica claro, por exemplo, em saber que apenas em 1986 na Índia foi aprovada uma lei em relação ao trabalho infantil (quase 50 anos de diferença em relação aos EUA) proibindo que crianças com menos de 14 anos fossem contratadas e, dois anos depois, foi fundado o Projeto Nacional de Trabalho Infantil (NPCL). Mais de 30 anos se passaram e nem todos os distritos do país adotaram o projeto (266 de um total de 271).
Enquanto os centros lucram com as vendas, os países de terceiro mundo, escolhidos para a fabricação, passam por um dilema: permitir a entrada de corporações dentro do território nacional para que se instalem e tirem vantagens sobre a falta de leis trabalhistas, ou impedir/restringir essa entrada e com isso perder uma grande oportunidade de impulsionar a economia nacional como um todo?
Afinal, caso deixem as empresas entrarem, alguns benefícios podem acompanhá-las como: o aumento das oportunidades de trabalho, novas tecnologias, às vezes uma diversificação da pauta de produção, além de uma melhoria em seu crescimento econômico geral (PIB). Contudo, caso tentem argumentar com essas corporações sobre regulamentações no geral ou, por exemplo, contestarem os baixos preços que os EUA compram as peças para depois revender com valores bem mais altos no primeiro mundo, podem sofrer reveses negativos. Afinal, os EUA poderiam facilmente encerrar a “parceria” e fazer aliança com outro país subdesenvolvido que teria potencial para especializar-se na produção em questão e que aceitaria de bom grado o capital estrangeiro, dolarizado, sendo injetado em sua economia. Dentro desta relação vemos que há dependência apenas em um dos lados. Ademais, é comum que as empresas se retirem para outros países caso as condições estejam aumentando em demasia nos locais onde suas produções ocorrem, migrando assim, para lugares ainda piores em relação a direitos humanos, mas abertos a incentivos econômicos e novas parcerias.
Um dos grandes setores que utiliza da terceirização a seu favor é a indústria da moda, principalmente por conta do "fast fashion" e sua necessidade de produzir enormes quantidades de roupas a preços extremamente baixos, pois seu elemento marcante é a velocidade. As marcas que aderem a esse tipo de modelo são as chamadas lojas de departamento (caso da Renner, Forever 21, Riachuelo, por exemplo), caracterizadas pela venda de roupas com valores mais baixos e que trocam seus catálogos quase semanalmente. E, para essa substituição ininterrupta dar certo e promover lucro, as peças devem ser fabricadas da forma mais barata e rápida possível, para que, mesmo vendidas por preços razoáveis, haja uma margem de lucro expressiva.
Lugares como a Índia e Bangladesh que, em virtude das péssimas condições de trabalho, falta de direitos trabalhistas (como férias reguladas e licença maternidade) e a não estruturação dos sindicatos, são selecionados para se tornarem o local de instalação das fábricas. Assim, as marcas transferem seus centros de produção para estes países, onde, em virtude da terceirização, além de não responderem caso as leis de proteção ambiental estejam sendo descumpridas, deixam de ser as responsáveis diretas pelas fábricas e, portanto, não devem nenhuma assistência aos trabalhadores por acidentes no ambiente de trabalho ou pela cobrança por melhoria de direitos, trabalhadores esses que são em sua grande parte mulheres, e que recebem menos de US $2/dia. Aproveitam-se dessa situação praticamente análoga à escravidão imposta aos trabalhadores para transformar seu negócio, o “fast fashion”, em um serviço extremamente lucrativo.
A Índia é um dos grandes países produtores de algodão e também apresenta uma forte indústria têxtil, somado às condições internas do país a respeito dos direitos trabalhistas, é vista com bons olhos pelas grandes marcas, sendo também um polo atrativo para terceirização para além da fabricação de roupas. Estes fatores contribuíram para certas análises econômicas que colocam o país como sendo uma economia forte e emergente, quase parte das economias chamadas de “Tigres Asiáticos”.
O grande crescimento da Índia, em particular a partir de 1995, trouxe ao cenário internacional o questionamento acerca do surgimento de uma nova economia forte e de rápida expansão. Em 2001, o país se tornou exportador de produtos refinados a partir do petróleo e desde 2010 tem importado quantias cada vez maiores de petróleo bruto, em especial da América Latina. Esse cenário econômico, favorável à primeira vista, aliado à propaganda do governo indiano acerca das qualidades e seguranças que seu país possui para receber investimento externo, levam a crer que o país está em um rumo a se tornar uma economia emergente e potente.
Porém, a realidade demonstra um cenário contrário. Um estudo feito em 2015 e publicado no International Journal of Social Economics analisa o crescimento recente do país e demonstra em suas conclusões que, apesar de ter tido uma relativa estabilidade econômica com indicadores positivos desde 1991, a Índia possui um déficit em seu capital humano, isto é, em seu investimento em educação e ensino superior, e sua infraestrutura é muito díspar internamente entre os seus estados, sendo que dentre os 17 maiores distritos do país, não há uniformidade alguma nesse quesito. Gerando um cenário ideal para o investimento externo, em especial considerando que o país é a sexta economia mundial de acordo com os indicadores do ano de 2020. Uma população com indicadores sociais e educacionais desiguais entre si, em um país cujo foco econômico primário é a exportação de bens refinados de petróleo, com políticas públicas que visam facilitar a entrada de capital e empresas estrangeiras, é um atrativo muito forte para qualquer empresário querendo cortar custos e aumentar seus lucros “sem ter que sair de casa”.
Não é à toa que a Índia possui um alto número de bilionários e uma distribuição extremamente desigual de renda. Em maio de 2014, a Índia possuía 20% da população mundial abaixo da linha da pobreza e em 2019, um estudo da ONG Alemã “Welthungerhilfe” e da ONG Irlandesa “Concern Worldwide” categorizou a situação da fome no país como severa, colocando o país na centésima segunda posição de cento e dezessete países estudados.
A partir destes dados podemos construir um panorama um pouco mais informado acerca da situação interna do país. Temos que a Índia é a sexta economia mundial, ao mesmo tempo em que sua população passa por uma intensa miséria e fome devido à má distribuição de renda. As análises que colocam o país como uma economia emergente, um possível “Tigre Asiático”, tendem a ignorar esses fatores sociais e focar nos fatores econômicos. Fato é que todas as economias consideradas Tigres possuem indicadores socioeconômicos muito mais estáveis que os da Índia, até mesmo países de porte parecido, como a China, que até mesmo se tornou uma potência econômica e deixou seu status de economia emergente. A Índia ainda está muito distante das demais economias classificadas como Tigres e precisa investir em capital humano e infraestrutura antes de começar a se aproximar desses países.
Isso tudo converge para uma imagem internacional que mostra a Índia como um local perfeito para investimentos, colocando a população indiana como dedicada e trabalhadora e o país como flexível e também um paraíso fiscal, mascarando as desigualdades, as medidas drásticas para a sobrevivência que o povo deve tomar diariamente, a má distribuição de renda e terras, a fome e a pobreza.
Outro fator que contribui para esta desigualdade são as leis trabalhistas no país. Embora haja uma legislação central ao tema que regulamenta as relações de trabalho, cada distrito, ou estado, da Índia pode determinar leis especiais dentro desta legislação. Além disso, a regulamentação e fiscalização dessas leis é falha ou ineficiente, deixando as situações abertas à interpretação judicial, o que prejudica os trabalhadores. Os dispositivos legais de proteção existem e estão previstos em código, mas, na prática, a falta de precisão e determinação dos termos que podem levar um empregado a ser demitido por justa causa, permitem que o empregador tenha total controle sobre seus trabalhadores e que estes não possuam nenhuma segurança no ambiente de trabalho ou estabilidade. Todas estas condições e problemas estruturais da Índia corroboram para o alargamento e intensificação da terceirização e o fato de ser um país visto a bons olhos pelas empresas externas, o governo prioriza esse investimento e um crescimento meramente econômico, subjugando sua população a distintas misérias, inequalidade de vida e exploração no trabalho seja no campo ou na cidade.
¹Estudante do 3° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (helenalucafran@hotmail.com).
²Estudante do 4° ano de História pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (felipelunamo@hotmail.com).
REFERÊNCIAS
SCHENIMANN, Cecily. Corporate Outsourcing to Take Advantage of Cheap Labor in Developing Countries. Liberty University, US. 2018.
THE True Cost. Direção de Andrew Morgan. USA: Life is My Movie Entertainment, 2015. Documentário (92 minutos).
Rashmi Umesh Arora Shyama Ratnasiri , (2015),"Recent growth experiences of Asian tigers: where does India stand?", International Journal of Social Economics, Vol. 42 Núm. 2 p. 143 - 162
Philip Banks, Ganesh Natarajan, India: The new Asian tiger?, Business Horizons, Volume 38, Número 3,1995, p. 47-50, ISSN 0007-6813, https://doi.org/10.1016/0007-6813(95)90022-5. (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/0007681395900225) Acesso em 18/07/2021
Muito esclarecedor o qu se passa no mundo atual. Muitas empresa adotam isso em beneficio próprio, gerando lucros a custa dos trabalhadors como escravos.