© Imagem: Walt Disney Pictures.
Escrito por: Bianca Mateus Rosa¹, Emily Caroline Costa da Cunha² e Júlia dos Santos Silveira³.
A história de Hua Mulan é algo muito sagrado e antigo na cultura chinesa, tendo sido apresentada pela canção “Ballad of Mulan” (Balada da Mulan) vinda das Dinastias do Norte e do Sul da China em meados do século VI, e foi popularizada ao decorrer da Dinastia Tang. Já no Ocidente, essa história foi adaptada para o cinema e televisão no final do século XX, através de uma tentativa da Disney em tornar a personagem um símbolo feminista, como pode ser percebido desde os primeiros desenhos da Mulan até a live action do ano de 2020, tendo sido esse fator importante para discutir as controvérsias decorrentes da “ocidentalização” desse símbolo cultural chinês. Em um primeiro momento, é necessário ressaltar as diferenças entre as histórias e como elas influenciaram a sociedade chinesa e, por último, avaliar como o filme de 2020 foi recebido e percebido na China e nos Estados Unidos.
A narrativa original destaca a representação de uma mulher que permanece fiel não apenas à família, mas também à monarquia, o que pode ser percebido nas obras ocidentais em uma escala menor. É possível reconhecer traços feministas na versão original, mas eles aparecem de maneira muito mais implícita e subjetiva, percebidos muito mais em estudos feministas chineses contemporâneos, como nas obras de Feng Lan. No Ocidente, a história foi contada como uma apresentação de uma mulher forte e guerreira, demonstrando que as mulheres podem ocupar espaços predominantes, majoritariamente, por homens e até mesmo alcançar maiores conquistas, tornando a personagem Mulan um símbolo feminista. Além disso, a obra norte-americana foi criticada pela adesão de uma narrativa romântica entre a figura principal e o General Xiang e as cenas de heroísmo por parte da personagem.
Levando esses fatores em consideração, é possível traçar os impactos das histórias na sociedade chinesa. Para começar, a história original de Mulan se tornou um exemplo de uma pessoa que está disposta a permanecer leal a seu país e que se preocupa com o núcleo tradicional familiar. Entretanto, a obra norte-americana demonstra a personagem dentro de uma visão heroica que, além de divergir da história original, busca dar a entender que ela possuía valores diferentes do resto da sociedade chinesa, levando à conclusão de que ela possuía ideais do feminismo ocidental. Por esse motivo, a narrativa estadunidense é contraditória e problemática, pois foca na personagem por motivos diferentes, dando ênfase em sua identidade de gênero e o que isso influencia na sua vida pessoal e profissional. Além disso, a desaprovação não vem apenas dos chineses. Na mídia dos EUA, o filme ficou conhecido como “anti-feminista”, pois reforça os estereótipos e papéis de gênero na sociedade, além de abraçar conceitos machistas e problemáticos, como pode ser percebido a partir da narrativa sobrenatural de sua força e habilidades, como se o fato de ela ser uma mulher forte fosse uma anomalia.
Sendo assim, “Mulan” (2020) é um filme que está cercado de problemáticas, principalmente tratando-se da representação da realidade histórica, tendo em vista que em diversos pontos do filme houveram certos desvios, já que foi produzido por uma equipe estrangeira e adaptado como um filme da Disney, envolto de magia e lições de vida. A China, como diversos países, não só asiáticos, mas também ocidentais, estabeleceu-se sobre uma estrutura machista e patriarcal. Diante disso, foram criadas diversas regras que as mulheres deveriam seguir à risca, já que eram consideradas incapazes de realizar diversas tarefas.
Não obstante, no período em que o mito de Mulan é passado (Northern Wei, 386 – 535 D.C.), o machismo era uma base da estrutura social, como em diversos outros povos da mesma época, porém, como ainda tratavam-se de povos nômades e seus conhecimentos eram alicerçados em seus ancestrais, o confucionismo ainda não era tão solidificado na cultura de Mulan, apesar de já exercer pequena influência nesse povo, tendo em vista que o Reino do Norte foi estabelecido pela tribo não chinesa Xianbei, a qual possui indícios de ter sido, inicialmente, bastante hostil quanto à cultura chinesa. Apesar disso, durante o reino do Imperador Xiaowen, a classe dominante começou a encorajar uma assimilação gradual dos costumes chineses. Não erroneamente, o filme “Mulan” (2020) representa o machismo estrutural enfrentado por Mulan, a qual teve que se disfarçar de homem para que pudesse ir para o exército no lugar de seu pai, que estava doente. Ao longo do filme, é possível notar que o foco principal é a luta de Mulan contra o machismo imposto pela sociedade chinesa da época, já que não existem outras grandes problemáticas trazidas pelo filme, a não ser a guerra que o Reino do Norte estava envolvido.
Apesar disso, o filme “Mulan” (2009), produzido pela China, retrata melhor a situação da protagonista diante da realidade. Mulan ainda teve que esconder sua verdadeira identidade feminina para que pudesse ingressar no exército, porém a maior problemática do filme não é lutar contra o machismo estrutural, mas as lutas internas da protagonista diante da guerra, o que a abalou profundamente. É importante considerar que a forma com que compreendemos o feminismo, através de seu desenvolvimento na cultura ocidental, não era do conhecimento das mulheres daquela época, por isso, talvez as formas de resistência seriam diferentes e provavelmente não estabelecidas de forma tão aberta e concretamente como são representadas no filme “Mulan” (2020), porém, este ainda é um obstáculo importante e tratado de forma suave e natural no filme chinês, assim como no mito.
Por fim, diante disso, é possível notar que “Mulan” (2020) foi produzido voltado ao público jovem e ocidental (norte-americano, mais especificamente), dessa forma, sendo um filme mais comercial, caricato e não tão fiel ao mito chinês, já que não era de fato sua intenção. Porém, por ser um filme live action, eram grandes as expectativas do filme ser mais fiel e semelhante ao conto, e, dessa forma, surgiram diversas críticas, principalmente do público chinês, que ainda afirma preferir a animação “Mulan” (1998).
Em relação à situação da mulher na história chinesa mais recente, a Revolução Comunista de 1948 é considerada o marco central para a mudança do status da mulher na sociedade chinesa. Constituindo metade da população do país, era essencial que essa força de trabalho fosse somada aos esforços para a transformação da China. Assim, as mulheres puderam participar do Exército Vermelho e exercer posições influentes dentro do Partido Comunista da China. Exemplos de lideranças femininas são: Yang Houzhen (1908-1977), que participou da Grande Marcha (1934-1935) mesmo com os pés deformados devido à tradição dos pés amarrados; Kang Keqing (1911-1992), conhecida como a “amazona vermelha” que chegou a comandar destacamentos de homens; Ding Ling, membro da Liga Chinesa dos Escritores de Esquerda. Assim, o partido comunista estabeleceu a igualdade de gênero como uma de suas bandeiras centrais, utilizando o slogan: “As mulheres na China sustentam a metade do céu”.
Durante a Revolução as mulheres renunciaram a todas as formas de “vaidade”, opondo-se às “práticas burguesas”, como a “busca pela beleza”. Assim, utilizavam os mesmos uniformes que os homens e realizavam trabalhos muito difíceis que chegavam a sobrepujar sua capacidade física. Embora as mulheres tenham chegado a ocupar espaços antes restritos aos homens, a literatura sobre o tema levanta o questionamento sobre o êxito real da Revolução Cultural e do Partido Comunista Chinês em alterar o status de inferioridade da mulher. Essa crítica baseia-se na ideia de que foi necessário vestir-se e agir como homem para poder ampliar seu espaço de atuação, ou seja, o que teria ocorrido foi a anulação do gênero e não a emancipação de fato da condição de mulher em relação aos homens. A escritora Ding Ling denunciou a hipocrisia existente entre os membros do partido comunista e a cobrança existente em relação ao casamento e à maternidade, os dois grandes deveres destinados à mulher. Nesse sentido, pode-se observar que as mulheres puderam participar desses eventos, mas dentro de limites não muito revolucionários.
Rodrigo Apolloni traz em seu artigo “Eu sou a invencível deusa da espada” (2004) uma reflexão muito interessante que inclui a personagem central, Hua Mulan, e está intimamente ligada à possibilidade que as mulheres tiveram de participar do processo da revolução comunista. Esses espaços, principalmente a guerra, aceitam a participação das mulheres em situações específicas, como a transformação da China ou condições especiais como a devoção filial, ou seja, uma justificativa é necessária, a qual deve se conformar com as estruturas da sociedade patriarcal. Por isso, a situação de subjugação da mulher não é aniquilada.
Mais recentemente, outro episódio em 2015 na China colocou em evidência os constrangimentos enfrentados pelas mulheres na luta pela emancipação, quando nove ativistas pela causa feminista foram presas, durante a organização de uma manifestação que tinha como um dos temas centrais o assédio no transporte público, acusadas de causar problemas e brigas. Quatro foram dispensadas, mas outras cinco ficaram detidas por cinco semanas, sendo liberadas sob o aviso de não causarem mais problemas. Dessa forma, pode-se observar que mesmo esforços tendo sido empregados para libertar as mulheres da forte estrutura patriarcal e com exemplos de grandes lideranças femininas, quando olhamos para a condição das mulheres depois da revolução vermelha, o sistema de opressão perdura, principalmente em relação à família, com fortes raízes no Confucionismo e figuras que parecem promover reflexões nesse sentido não conseguem se desvencilhar dessa estrutura, como Hua Mulan, e, por isso, não promovem uma narrativa revolucionária de fato.
¹Estudante do 4° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (bianca.mateus.rosa@outlook.com).
²Estudante do 4° ano de Direito pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (emily.caroline@unesp.br).
³Estudante do 4° ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (julia.s.silveira@unesp.br).
REFERÊNCIAS
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