© Imagem: Central Tibetan Administration.
Escrito por: Júlia dos Santos Silveira¹.
Desde os anos de 1950 o Tibete é reconhecido como região autônoma da China, sendo isso consequência de uma invasão do Exército de Libertação Popular no país. Para entender melhor o que isso significa e como isso ocorreu, é preciso entender o que ficou popularmente conhecido como “sinicização do Tibete”. A prática de sinicização consiste, basicamente, em uma imposição do governo chinês em diversos aspectos do país: mudanças políticas, novo modelo de vida e, principalmente, desenvolvimento econômico e total dominância chinesa nas relações exteriores do país. Entretanto, o governo chinês prometeu não interferir em questões culturais e religiosas dos povos nativos, embora a promessa tenha acontecido de forma gradual, e também é preciso reconhecer que houve resistência por parte dos tibetanos, sendo que a população determinou o Dalai Lama como líder espiritual do país e também muitos tibetanos foram procurar refúgio nos países vizinhos.
Para entender melhor a importância do Dalai Lama no debate, é necessário conhecer um pouco de sua história com o país e como isso afeta a relação da região com a China. Desde o ano 1950, Dalai Lama ─ uma figura religiosa importante do budismo tibetano que percorre gerações através da crença da reencarnação ─ foi reconhecido como chefe de Estado, o que se tornou um empecilho para a invasão das tropas chinesas no país. De início houve uma tentativa de acordo por ambas as partes, todavia, as tentativas não tiveram sucesso, o que resultou no exílio de Dalai Lama em 1959. Apesar disso, os tibetanos ainda reconhecem a sua governança independente como uma resistência valiosa para impedir a imposição cultural e religiosa por parte do Estado chinês. Desse modo, o governo chinês o reconhece como uma figura de ameaça e desordem, o que faz com que a população sofra com a constante tentativa de supressão e imposição (FLORCRUZ, 2010; MITTAL, 2013, p. 1).
Outro ponto a ser considerado, no que diz respeito aos direitos tibetanos, é que o governo chinês acrescentou em sua Constituição o seguinte artigo na Lei da Autonomia Regional Nacional (1982, p. 4):
Todas as nacionalidades da República Popular da China são iguais. O Estado protege os legítimos direitos e interesses das minorias nacionais e fomenta uma relação de igualdade, unidade e assistência mútua entre todas as nacionalidades da China. É proibida toda a discriminação e opressão de qualquer das nacionalidades; são proibidos todos os actos que possam atentar contra a unidade das nacionalidades ou que instiguem à secessão. O Estado auxilia as zonas habitadas por minorias nacionais com vista a acelerar o seu desenvolvimento económico e cultural, de acordo com respectivas características especiais e necessidades. Nas zonas em que pessoas pertencentes a minorias nacionais vivam em comunidades compactas vigora um regime de autonomia regional, sendo criados órgãos de governo próprio para o exercício do direito à autonomia. Todas as zonas nacionais autónomas são parte inalienável da República Popular da China. Os povos de todas as nacionalidades são livres de usar e desenvolver as suas línguas escritas e orais, assim como de preservar ou reformar os seus usos e costumes próprios.
Portanto, é necessário reconhecer a tentativa do governo chinês em tentar amenizar a situação crítica de impasse entre o Tibete e o Estado chinês. No entanto, no que diz respeito à prática de sua própria Constituição, os chineses descumpriram boa parte do prometido: muitos templos e outros lugares sagrados para o budismo tibetano foram vandalizados e destruídos, assim como alguns textos religiosos foram queimados.
Para além da questão religiosa, o Exército da Liberação Popular foi acusado de cometer diversas atrocidades contra a população civil, incluído denúncias de abuso sexual, tortura e assassinato. De modo geral, os movimentos de resistência enfrentaram diversos tipos de abuso, fazendo com que o Terceiro Fórum do Tibete denunciasse o Estado chinês por descumprir com suas promessas de proteção e segurança de todas as regiões estatais, incluindo as regiões autônomas. Esses fatos chamaram a atenção das Nações Unidas, pois eles descumpriam com as ordens estabelecidas pelo comitê anti-tortura dos anos 2000.
Além desses fatores, os interesses econômico e político por parte do governo chinês se tornaram uns dos principais motivos para a invasão do país. Hu Jintao (2001) em seu discurso explicou que:
Tibet is in the southwestern frontier of the motherland, with a vast stretch of land and a most important strategic position. The development, stability and security of Tibet have a direct bearing on the fundamental interests of people of all ethnic groups in Tibet as well as ethnic solidarity, national unity and state security… Rapid economic development is the fundamental condition for realising the interests of all ethnic groups in Tibet and also the basic guarantee for greater ethnic unity and continued stability there.
Ademais, no que diz respeito a sua posição estratégica, o governo chinês pretendia transformar o Tibete em uma área de estabilidade de desenvolvimento social, político e econômico da China, trazendo como consequência o aumento de investimentos estrangeiros. Mesmo assim, os tibetanos que resistem contra a invasão determinaram que a posição chinesa se tratava de uma tentativa imperialista de comando, ou seja, pouco agregaria para o Tibete e sua sociedade civil.
A partir de 1992, o governo chinês determinou que, para impulsionar o andamento de seu próprio desenvolvimento, seria necessário proporcionar e promover a imigração chinesa para a região do Tibete e também a imigração tibetana para as outras áreas do território chinês. Para que isso fosse realizado, o Estado chinês mudou a política de migração entre todas as regiões chinesas, fazendo com que o número de imigrações acelerasse rapidamente. Essa mudança proporcionou o aumento de mão de obra, impulsionando ainda mais o mercado nacional. Além disso, muitos tibetanos acabaram, em primeiro momento, mudando-se para o centro urbano, causando um impacto significativo na urbanização e capacidade urbana do país e fazendo com que os tibetanos se voltassem para a marginalização e condições precárias de vida. Todos esses fatores tinham o propósito de beneficiar a harmonia entre as duas regiões, criando uma maior estabilidade social que contribuiria para a estabilidade da China como um todo.
Portanto, é possível reconhecer que as relações entre a China e o Tibete ainda se encontram fragilizadas e incertas. A complexidade do assunto pode determinar o futuro de ambas as regiões, tendo em vista que a resistência poderia levar à independência do Tibete, assim como a morte do Dalai Lama ou a supressão completa de entidade poderiam pôr um fim à narrativa contrária à invasão chinesa. As consequências dos atos chineses ainda trazem resultados mistos, embora tenham beneficiado o Estado chinês, as atrocidades cometidas contra os tibetanos e a marginalização da comunidade tibetana no território chinês ainda são alvo de críticas pela comunidade internacional.
¹Estudante do 4º ano de Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais de Franca (juliasantossilveira@hotmail.com).
REFERÊNCIAS
CHINA. Constituição (1982). Constituição da República Popular da China. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/marcos/hdh_constituicao_chinesa_1982.pdf. Acesso em: 10 jan. 2021.
COOKE, S. Merging Tibetan Culture into the Chinese Economic Fast Lane. França: Centre d'étude français sur la Chine contemporaine, 2003.
DAVIS, E. V. W. Tibetan separatism in China. Korean Journal of Defense Analysis, v. 21, issue 2, p. 155-170, 2009. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10163270902872135. Acesso em: 07 jan. 2021.
FISCHER, A. M. “Population Invasion” versus Urban Exclusion in the Tibetan Areas of
Western China. Population Council, 2008.
FLORCRUZ, J. Analysis : Why the Dalai Lama angers China. CNN, Beijing, 18 fev. 2010. Disponível em:
http://edition.cnn.com/2010/WORLD/asiapcf/02/18/analysis.china.dalai.lama/index.html. Acesso em: 08 jan. 2021.
MITTAL, D. The sinicization of Tibet. Counter Currents, 2013. Disponível em:
https://www.countercurrents.org/mittal030613.htm. Acesso em: 05 jan. 2021.
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